Eu nasci junto com o golpe militar de 1964. Durante metade da minha vida cruzei diariamente a Ponte Rio-Niterói, obra símbolo do Brasil Grande do regime militar. Repetindo Ulysses Guimarães, tenho ódio e nojo à ditadura, mas foi atravessando essa ponte que carreguei o Brasil nas costas, para lá e para cá, por 30 anos. A obra faz 50 anos neste 4 de março. Já o país precisa buscar novas saídas porque “a coisa aqui (ainda) está preta”.
Foi um Brasil real demais que rodou por aquelas pistas comigo, entre o Rio e Niterói, por mais de nove mil dias, nove mil edições de jornal. As notícias me levavam de um lado para o outro. Repórter, redatora, editora de Política, de País.
Por vezes cada história deste Brasil profundo, depois de atravessar a ponte, dormia comigo, ficava grudada dias, meses… Trabalhei em todas as eleições presidenciais, de governador e de prefeito do Rio desde o fim da ditadura. Quando Fernando Collor foi eleito, eu deixei a sede do jornal no Rio e atravessei a ponte. Eleitos ou reeleitos todos os outros presidentes depois, trabalhei na edição do jornal e atravessei a ponte. Nunca dava para deixar o país para trás. O Brasil pesa.
A piada que me distraía era que, se o mundo acabasse, ainda assim eu iria atravessar a ponte em seguida…
A primeira eleição em que não atravessei a ponte depois do resultado final das urnas foi a do devoto de ditadores, em 2018. Quem atravessou, desta vez, foi o Brasil.
A ponte tem nome de ditador, Costa e Silva, o mais sangrento e segundo presidente do ciclo militar (1967 a 1969). Começou a ser construída em 1968, apenas nove dias antes de ele assinar o famigerado AI-5 e acelerar a montagem do aparelho de repressão que matou ou desapareceu com cerca de 500 pessoas.
Gestada na ditadura, a Rio-Niterói, como passou a ser chamada, foi inaugurada ainda no regime militar pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici. A megaobra que desafiou a engenharia tinha previsão de dois anos. Foi concluída em cinco anos e inaugurada em 4 de março de 1974 após intervenção na gestão da empreitada.
Apenas 11 dias depois Médici passou a cadeira ao também general Ernesto Geisel. O Brasil ainda demorou a sentir novos ventos, como os que levaram à Anistia em 1979, à abertura controlada de João Figueiredo e às Diretas-Já em 1985. E assim chegamos a 1988, com a Constituição Cidadã e o discurso histórico de Ulysses Guimarães repudiando a ditadura.
Eis que a ponte que nasceu na ditadura completa 50 anos. O país mudou, a ponte se transformou. E as notícias que eu “carregava” pela ponte se alargaram.
Foi divertido algumas vezes, mas não foi fácil segurar o rojão. O mundo também costuma exagerar nas notícias ruins. Terrorismo, guerras, muita barra pesada em meio a pouca poesia. E até o vexame do 7×1 do Brasil, na Copa dentro de casa, eu editei na primeira página do jornal. Depois? Depois atravessei a ponte.
A vida passa por ali. A vida das duas cidades, Rio e Niterói, tão mais próximas com a ponte. Uns a atravessam para serem felizes nos braços do (a) amado (a) ou para pegar no colo o neto que vive do outro lado da Baía. Outros vão salvar vidas, ganhar o pão. Tem gente que só leva poesia para a ponte, a percorre inebriada pelo que viu em um museu, feliz pelos encontros com amigos ou porque seu time deu um show de bola no Maracanã.
Mas o Brasil real é pesado. E continua na encruzilhada: qual a ponte para o futuro? Uma argamassa árida, dura, sem saídas fáceis.
É isso. Não há saída fácil para o país. Para a ponte talvez seja mais concreto o futuro.
Obra gigante, país continental. Mas vamos indo bem, de lá para cá, daqui para lá. Rio e Niterói continuam lindos. Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll. Vida que segue.