Os que consideram Niterói uma cidade provinciana deveriam ter vivido nela a primeira metade dos anos 80 e trabalhado na reportagem de “O Fluminense”, à época o principal jornal do município.
Não era pequena a quantidade de matérias recomendadas que tínhamos que fazer. No jargão jornalístico, recomendada era a reportagem determinada pela direção da empresa.
Valia tudo: quermesse organizada pelo vereador amigo, aniversário, descerramento de busto, poda de árvore, gincana beneficente, festa de debutantes.
Mas nada se comparava às inaugurações de placas de ruas. Uma ideia da administração do prefeito Waldenir de Bragança, homem correto, mas conservador em demasia.
Ele apreciava a liturgia do cargo. Sem dinheiro, porque a prefeitura estava semifalida, resolveu batizar as ruas até então indicadas por números. Sempre nos ermos do Engenho do Mato, Várzea das Moças, Cafubá, Jacaré, Moreno, Badu, Caramujo e adjacências.
Já seria barra pesada cobrir um negócio desses em dias de semana. Mas as inaugurações ocorriam sempre aos sábados, bem cedo. Os repórteres ficavam transtornados quando recebiam as pautas. Ou desistiam da noitada de sexta ou iam trabalhar virados, com ressacas medonhas.
Embora a prefeitura anunciasse a inauguração da rua, nenhuma melhoria acontecia no local. Era só o descerramento da placa com o nome de homenageado, quase sempre um cidadão recém-falecido, amigo de algum político ou do dono do jornal, dr. Alberto Torres, já tantas vezes citados nesta coluna.
Eram ruas esquecidas, de chão terroso cheio de crateras, com acesso bastante complicado naqueles dias. O esgoto corria em pavorosas valas negras. O lixo que se amontoava nas sarjetas atraía robustas ratazanas. O abandono daquela região pelo poder público era mais do que evidente. E assim continuaria após a solenidade.
A placa era presa a um poste ou a um muro. Um pano a cobria. Havia os tradicionais, inúmeros e longos discursos. Piorava quando dr. Alberto comparecia, porque ele exigia a anotação e a publicação da íntegra de todos os pronunciamentos.
Sempre participavam o prefeito, o vice Adilson (desculpem, mas esqueci o sobrenome dele), secretários, vereadores, às vezes um deputado estadual, um desembargador aposentado, um suposto líder comunitário de olho em alguma bocada. Todos de terno, debaixo de temporal ou do sol inclemente de verão. Saiam cobertos ou de lama ou de poeira, não tinha escapatória.
Tudo terminava com a fala de um representante da família do defunto. Era a hora da choradeira. Nenhum dos homenageados tinha defeitos. Eu costumava, na ocasião, lembrar do célebre discurso em “Engraçadinha, seus pecados e seus amores”, clássico texto do dramaturgo Nelson Rodrigues. No enterro do personagem dr. Arnaldo, o orador, à beira do túmulo, assegura aos presentes em altos brados: “Amantes, nunca as teve”.
Nós, repórteres, tínhamos horror daquelas solenidades fúnebres e matinais. Coube à jornalista Deborah Bruno, em seu mau-humor adorável, definir o trabalho que realizávamos naqueles dias, há quase 40 anos.
“É mais fácil um fariseu entrar no Reino de Deus do que isso que fazemos aqui ser jornalismo! Quatro anos de faculdade pra isso, Serginho?”, desabafou ela na Redação, ensandecida, talvez por ainda calçar a sandália de grife inutilizada pelas imundícies em que pisara para chegar à esquina onde a placa foi descerrada.
(Na semana que vem falarei sobre o nordestino Gaúcho, dono de uma hedionda barraca de cachaças, rabos-de-galo e tira-gostos ao lado da favela do Sabão.)