Quem conhece o dia-a-dia do Judiciário está acostumado com a formalidade dos procedimentos, as togas, o trato educado entre oponentes, a cortesia acima das diferenças. A história que conto nesta coluna vai na contramão disso tudo. Posso dizer que, há quase 40 anos, em uma tarde calorenta, o Fórum de São Gonçalo virou terra de ninguém.
Eu era na ocasião repórter do jornal “O Fluminense”, com sede em frente à Rodoviária de Niterói. Naquele dia haveria um Tribunal do Júri no município vizinho. O jornalista designado para acompanhar o julgamento do homicida era o laureado Antônio Werneck.
Pouco antes da saída da equipe deram falta dele. Cadê Werneck? Ninguém sabia, ninguém o vira. Os minutos se passavam. Um telefonema esclareceu o mistério. Com voz combalida, o próprio Werneck explicou: acordara muito mal, não tinha condições de trabalhar. O diagnóstico veio dias depois: miguelite aguda provocada pelo violento cachaçal da véspera.
Sobrou pra mim. Segui contrariado para São Gonçalo, tive que interromper trabalhos importantes na área do jornalismo investigativo. Mal sabia o que me esperava. O fórum ficava nas imediações do Rodo. Era um prédio em petição de miséria.
A fachada em pandarecos escondia repartições que pareciam cenários de um filme macabro. Fios expostos, tintura descascada, vazamentos, mofo, camelôs vendendo produtos de origem suspeita, mendigos.
O salão em que aconteceria a sessão do Tribunal do Júri era uma fornalha. Os ventiladores de parede não funcionavam. Não havia ar refrigerado. O ar viciado deixava as pessoas que lotavam o ambiente em situação de extremo desconforto, cobertas de um suor pegajoso.
Quando o juiz entrou, as pessoas não se levantaram. Não por desrespeito, mas porque todas já estavam de pé. As poucas cadeiras que havia estavam quebradas.
Era um magistrado idoso, que seguramente cumpria suas últimas tarefas no Judiciário. Antes de falar já dava mostras de um extremo mau humor, pelo gestual irritadiço. O promotor parecia ainda mais velho. E também não demonstrava a menor satisfação com aquele trabalho. O advogado do réu era um legítimo “porta de cadeia”: palito no canto da boca, charutinho, barba por fazer, colarinho puído, gravata andrajosa, gírias de malandro de rua.
Aquela sessão prometia, conjecturei. Os detalhes do crime praticado pelo réu perderam-se na minha lembrança. Era um sujeito bem pé-de-chinelo, que matara um colega de bebedeira em uma desavença qualquer.
O Conselho do Júri era formado por sete jurados. Talvez fossem funcionários que conseguiam a dispensa do trabalho para sair da rotina ou até mesmo filar o lanche brabo gratuito. Sabe-se lá o motivo de terem se voluntariado para aquela missão.
Desde o início estava nítida a animosidade entre advogado e promotor. E de ambos com o juiz. Gritos exaltados de parte a parte. As intervenções do meritíssimo também eram ríspidas, embora ele empregasse as tradicionais expressões fidalgas da Justiça: data vênia, vossa excelência, douto advogado etc.
Aos poucos, a situação foi se agravando. O interrogatório do réu demonstrou que ele ou sofria problemas graves de fala ou chegara diretamente da prisão sob o efeito de uma bebida bastante forte.
O estado do homicida irritou os presentes. Logo começaram as vaias, interrompidas aos berros pelo juiz. Enquanto isso, advogado e promotor se aproximavam mais do que deveriam. Houve uma troca de insultos e de violentos empurrões, interrompida por dois jurados, integrantes, ao que parecia, da conhecida “turma do deixa disso”.
Irado, o magistrado esbravejava contra o desrespeito à Justiça, à audiência, ao Conselho de Sentença, aos serventuários, às testemunhas e ao próprio réu. O homem estava transtornado. Assegurou que peticionaria à OAB pedindo a expulsão do “porta de cadeia” e que agiria para que a promotoria punisse com rigor o seu representante no julgamento.
“Não aceito molecagem no meu tribunal. Vocês são moleques, moleques, moleques!!! Isso aqui não é a Casa de Noca!! Vocês não vão transformar meu júri na Casa de Noca!!!”
O promotor procurou acalmá-lo. Dirigiu-se ao juiz de forma educada, reconhecendo o erro e desculpando-se. Mas tentou jogar a culpa da confusão no advogado de defesa.
“Excelência, confesso que me excedi, mas o senhor há de convir que fui terrivelmente provocado. Data vênia…”
Exasperado, o magistrado o interrompeu de pronto: “Chega! Data vênia é a pqp!! O julgamento está suspenso cambada de filhos da p…!!!!”.
(Na próxima coluna falarei sobre a triste tarde em que a redatora chorou em meio aos colegas.)