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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
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Canibalismo na alta sociedade de Niterói

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Reprodução da internet

Todos os anos realizava-se em Niterói o festejo social que destacava as personalidades do ano. Geralmente em dezembro, a solenidade reunia ilustres cidadãos niteroienses, senhoras com roupa de gala, banda ao estilo Ray Conniff e uísque bastante suspeito. Estas as marcas do tradicional encontro.

O evento que relato nesta coluna dedicada a episódios de meu trabalho de jornalista em “O Fluminense” aconteceu, se bem me lembro, em 1984, em um dos clubes náuticos da Estrada Froes. Qual deles? Não faço mais ideia.

Naquele dia cheguei de manhã à Redação. Chefe de reportagem e pauteiro, o querido Gilberto Fontes me chamou. Sempre gentil, pediu ajuda em uma pauta noturna.

“À noite, Gilberto? Hoje tem jogo do Fluminense. Por que eu?”, indaguei.

“O velhinho mandou, Serginho.”

O velhinho era o dr. Alberto Torres, presidente do Grupo Fluminense de Comunicações. Ex-deputado, dr. Alberto era um homem formal, que apreciava discursos e se destacava como orador nas solenidades.

Não precisei perguntar a razão de o velhinho ter determinado minha presença na cobertura. Gilberto logo explicou: “Ele gostou muito da matéria que você escreveu outro dia naquela posse na Academia Gonçalense de Letras. E também naquela outra do Cenáculo Fluminense de História e Letras”.

Nas duas coberturas, reproduzi a íntegra dos muitos discursos O jornal os publicava do princípio ao fim. Das saudações às despedidas. Como não havia gravador, tinha que anotar as falas à mão. Ao que parece, dr. Alberto apreciou minha destreza e mandou a chefia me pautar para todos os eventos seguintes em que ele discursaria.

Não escapei da cerimônia. Lembro-me que estavam nela o prefeito Waldenir de Bragança, sujeito atencioso, o presidente da Câmara, vereador Fernando Nery, e muitos outros políticos.

Nas mesas, sentavam-se destaques do saber e da cultura: o reitor José Raymundo Martins Romêo, o antropólogo Roberto DaMatta, o literato Leir Moraes e o escritor José Cândido de Carvalho, autor do clássico “O Coronel e o Lobisomem”, membro da Academia Brasileira de Letras.

Sagaz, o imortal evitou o uísque. Trouxe consigo, malocado no terno largo, uma garrafa cheia do líquido transparente que dizia ser a mais deliciosa bebida da face da Terra: a purinha de alambique de sua terra natal, Campos, no Norte Fluminense.

Do mundo empresarial, prestigiavam a cerimônia lideranças como Alberto Guerchon, José Dornas Maciel e Fernando Wrobel. O desembargador Jorge Loretti e o jurista Herval Basílio representavam o campo jurídico. E, logicamente, presente estava o jornalista Alberto Torres.

Ao conduzir a cerimônia, o locutor de voz cavernosa identificava os presentes, convidava os oradores aos púlpito e anunciava aos poucos os vencedores daquele ano. O modelo imitava o Oscar. O escolhido não sabia que seria chamado. Ao levantar, sob aplausos e rompantes dos trompetes da banda, dirigia-se ao palco e fazia seus agradecimentos.

Assim, revelavam-se aos poucos os destaques do ano: o melhor lojista, o melhor empresário, o melhor vereador, o melhor engenheiro, o melhor jornalista, o melhor esportista e vai por aí.

O grande final era o Homem do Ano de Niterói, momento mais esperado. O tonitruante locutor esmerava-se no mistério. Antes de anunciar o vencedor, dava pistas à plateia.

Lembro ouvi-lo destacar que o Homem do Ano passara um período de estudos e ensino na prestigiosa Harvard, universidade secular nos Estados Unidos; que vivenciara o cotidiano de índios totalmente nus isolados nas florestas brasileiras; que escrevera livros e ensaios clássicos; niteroiense de berço, da cidade jamais se afastara. Niterói era sempre seu destino ao término das viagens profissionais e acadêmicas que realizava, garantia, eloquente.

Ao concluir, o mestre de cerimônia causou comoção:

“Senhoras e senhores! Com orgulho e emoção anuncio a todos que o Homem do Ano de nossa cidade, honraria tão ansiada pela sociedade niteroiense, é o antropófago Roberto DaMatta!! Vamos aplaudir o antropófago Roberto DaMatta! Um dos mais importantes antropófagos de todos os tempos!!! Posso dizer, da história da humanidade!! E é de Niterói, ele é de Niterói!!! O antropófago Roberto DaMatta é de Niterói”.

Cabisbaixo, dr. Alberto me chamou de lado. “Por favor, garoto, omita de seu texto a informação sobre a predileção  gastronômica do professor DaMatta.” Assim o fiz.

(Na semana que vem, contarei sobre os incêndios criminosos que apavoraram São Gonçalo na primeira metade dos anos 80 e, especialmente, quem, por milagre, sobreviveu a eles.)

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