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Andanças

Por Giovanni Faria

Giovanni Faria é jornalista com mais de 30 anos de atuação em jornais e rádios do país, professor universitário e um andarilho pelo mundo. Já percorreu mais de 5.500 KMs em 11 viagens pelo Caminho de Santiago de Compostela. Nasceu em Nova Friburgo, mas é frequentador assíduo das ruas de Niterói, onde mora e caminha diariamente por todos os cantos da cidade.
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Caminho, logo estou vivo. Apesar da máscara!

coluna Giovanni faria

Estoy vivo, y no es poco…

Nunca gostei de usar boné para caminhar. Proteger, protege. É vero. Mas é um corpo estranho que sombreia minha visão e com o qual não me acostumo. E olha que tentei inúmeras vezes. A cabeça ao sol é um risco que, confesso, gosto de correr. Coisa de miolo mole ou cabeça dura. Mas naquele verão tive de sucumbir. Decidi usar bandana. Apesar da proteção contra a radiação ultravioleta (UV), confesso que adotei o acessório muito mais para conter, ao vento, as madeixas que me acossavam os ombros. Bons tempos.

O calor era infernal no verão espanhol. Cada fonte de água pelo caminho, à qual eu me atirava por inteiro, era uma espécie de ducha corona divina que me ressuscitava do suor e cansaço. Em instantes, alguns passos depois, quase fração de minuto, tudo da testa para cima já se secava de novo, de forma esturricante. Então eles apareceram. Sim, nunca faltam, nunca adoecem, não entram em extinção. Mosquitos!

Dessa vez, à frente de meu rosto suado, eram milhares, seguramente milhões. Embaraçavam a minha visão. Minúsculos, formavam nuvens que, com ou sem exagero, faziam sombra na imensidão do caminho. Deixavam os gafanhotos do Egito, bíblica praga-mor, no chinelo. Olhos, nariz, ouvidos, boca, tudo parecia caçapa onde eles invadiam sem licença. Com precisão, tipo a bola sete fatal da sinuca.

Acossado, resolvi subitamente cobrir todo o rosto com a bandana. Virei, na aparência, uma espécie de homem-aranha sem dotes mágicos. Deu certo. Mal ou bem, conseguia ver o caminho à frente pela trama fina do tecido. Assim, me esquivava das garras peçonhentas daquelas pestes voadoras, insetos microscópicos atazanantes. Restava apenas o zumbido produzido por elas, espécie de som de besouro cantado por Djavan.

Pois foi com a bandana cobrindo olhos, boca e nariz, principalmente, que, em segundos, apenas alguns metros percorridos, senti um sufocamento atroz. Respirava mal, arfava descompassadamente. Incômodo e irritação que me fizeram atirar ao longe a bandana e enfrentar os invertebrados entre tapas e bofetões. Indaguei em silêncio: como é possível caminhar com o nariz tapado? Mal sabia eu…

Exatamente um ano depois da cena acima a pandemia chegava ao Brasil com passaporte e visto de permanência. No primeiro dia em que pisei o calçadão da Praia de Icaraí, lembrei-me daquela nuvem ecura na meseta da península ibérica. Aquele desconforto momentâneo estava de volta, agora em larga escala. Sussurrei, sob a máscara:
– Não vai dar. Caminhar de máscara, não vai dar.

Mas deu. Dos males, o menor. Das malas, a maior. Não reclamo. De vez em quando abro uma exceção e praguejo sim. E muito. Mas uso, e ponto final. Aprendi a respirar atrás dos panos. São dois anos assim, respeitando a ordem das coisas, mesmo que não seja a natural.

É como diz, lá no alto do texto, o título que retirei de um jornal espanhol numa reportagem sobre o drama de um peregrino: estou vivo, e não é pouco. Que nossas andanças nunca cessem – bom tempo há de vir.

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