O ideal seria que todo jornalista soubesse escrever. Mais do que qualquer outro profissional, ele precisa conhecer a língua portuguesa. Saber o que é sujeito e predicado, usar a crase com correção e, sobretudo, ter noção do vocabulário e acertar a grafia das palavras.
Em “O Fluminense” de Niterói deparei-me com aberrações gramaticais jamais esquecidas. Mas não foi só lá, deixo claro. Jornalista despreparado tem em todo lugar. Encontrei muitos na “Folha de S.Paulo”, em “O Estado de S.Paulo” e em “O Globo”.
No “Fluminense”, na bancada de redatores, um texto que nos chegou às mãos trazia a palavra você escrita com cedilha: voçê. Abismados, os redatores caíram na gargalhada. Outro dia mesmo, em encontro com a colega Irany Tereza, ela me perguntou:
“Serginho, lembra do você com cedilha?”.
“Jamais esqueci”, respondi. Quase 40 anos depois, voltamos a gargalhar.
Cachorro com X (caxorro) aparecia de vez em quando. Defunto falando também. Havia um repórter que escrevia diálogos dos últimos momentos das vítimas de assassinatos. Uma declaração qualquer entre aspas, seguida de “disse o morto”. O detalhe é que nunca havia testemunhas dos crimes. O matador, ninguém sabia quem era. Como o repórter sabia o teor das conversas? Ele nunca nos esclareceu o mistério.
Na primeira metade da década de 90, auge da “Folha de S.Paulo” em seu projeto de modernização do jornalismo brasileiro, apareceu na Sucursal do Rio uma profissional com os atributos fundamentais exigidos pelo diário paulista: mestrado, doutorado, poliglota, ensaios publicados sobre filosofia e psicanálise, especializada em epistemologia da comunicação. Uma sumidade que nos assustou porque não havia vagas na sucursal. Um de nós rodaria para ela ser efetivada.
Em um fim de semana, eu na chefia do plantão, temporais castigaram o Norte Fluminense. Os rios Paraíba do Sul, Muriaé, Itabapoana e Pomba saíram dos leitos, devastando cidades, deixando milhares de desabrigados, causando mortes às dezenas.
Era janeiro, mês de calor e tempestades. Pedi à consagrada repórter Elvira Lobato que fosse ao local da tragédia, palmilhasse aquela região tão sofrida, a fim de darmos ao leitor informações exclusivas sobre o ambiente de tristeza e destruição.
Enquanto Elvira deixava a redação às carreiras, tamborilando no bloco e cantarolando uma ciranda de roda, como era de seu estilo, pedi à literata que ligasse para a Defesa Civil e pegasse o número exato de flagelados, cidade por cidade, a fim de prepararmos um mapa das terras alagadas pelas borrascas.
Uma hora depois a moça retorna à chefia.
“Campos, 120 desabrigados e 15 mortos. Italva, 185 perderam as casas. Cardoso Moreira, 200 desalojados, 18 desaparecidos, oito mortos. Bom Jesus de Itabapoana, destruição total, com mais de 50 mortos carregados pela enxurrada. Bocecula…”, recitava ela.
Tive que interrompê-la: “Não existe essa cidade Bocecula”. Irritadiça, ela rebateu: “Existe sim. Lá são pelo menos 38 famílias que perderam tudo e 17 mortos!”.
“Conheço bem a região. Asseguro a você que não existe no Estado do Rio de Janeiro um município chamado Bocecula”, insisti.
Ela mantinha a teima e, estupefata, assegurou:
“Claro que existe. Conversei com o coronel da Defesa Civil. Ele falou que a situação em Bocecula é de calamidade pública. Jamais pensei que um chefe da ‘Folha’ desconhecesse a existência da cidade de Bocecula”.
O tom da discussão aumentava e, pelo andar da carruagem, quem perderia o emprego era eu, já que a douta filósofa vinha recomendadíssima de São Paulo.
Chamei o contínuo Bode Queimado. Pedi a ele que abrisse a gaveta de mapas e me trouxesse um oficial do Estado do Rio. Abri a planta na mesa, chamei a moça. “Vamos procurar Bocecula.”
Comecei por Campos, maior município da área castigada pelas inclementes intempéries. A seguir, na margem direita do Paraíba do Sul, São João da Barra. Ao norte, no litoral, São Francisco do Itabapoana. Rumo ao interior, Cardoso Moreira, Italva, Itaperuna, Bom Jesus do Itabapoana, São Fidélis, Miracema, Cambuci, Santo Antônio de Pádua, Itaocara… Nada de Bocecula. A repórter começou a ficar nervosa.
“Esse mapa está todo errado! Uma vergonha para a ‘Folha de S. Paulo’. Vou ter que avisar Marcelo Beraba [o popular Barba, rigorosíssimo secretário de Redação à época, temido por todos nós] que a Sucursal do Rio está muito mal equipada. Material e intelectualmente!”
Quieto, voltei ao mapa. Cheguei ao Noroeste Fluminense, na divisa com a Zona da Mata de Minas Gerais. Há três cidades ali: Varre-Sai, Natividade e Porciúncula. Matei a charada. Bocecula era Porciúncula. Pedi, educadamente, à jornalista que alterasse a grafia da cidade na arte que preparava com os números da catástrofe.
“Bocecula é Porciúncula. Corrige lá, por obséquio.”
Mesmo contrariada, ela cumpriu a determinação. Cinco minutos depois, voltou com o material. Município por município, trazia as informações que eu pedira. Bocecula deixara de existir. Mas Porciúncula ainda não constava da arte. Em seu lugar, estava escrito Borciúncula. Fingi que não reparei. Corrigi e mandei para São Paulo. Não podia mais nem atrasar a edição nem me arriscar a perder o emprego. Afinal, o salário não era grande coisa, mas era o único que tinha.
Quanto à sábia jornalista, ainda durou um tempo na Sucursal, até assumir em São Paulo um cargo importante na Redação. Antes de nos deixar, ela foi pautada para escrever reportagem sobre quantos ingressos ainda havia à venda no Sambódromo. Era véspera de Carnaval.
O texto que entregou à chefia iniciava com o seguinte parágrafo.
“O folião de São Paulo ainda pode comprar ingressos para o desfile de domingo. Há cadeiras nos setores 4, 5 e 6; camarotes nos setores 3 e 8; e freezers, nos setores 1, 2 e 7.”
Presumimos que os freezers eram as conhecidas frisas. Caso contrário, os paulistas morreriam congelados na Passarela do Samba em pleno Carnaval carioca.
Desta vez, deixamos pra lá. Era bom evitar problemas. Corrigimos sem ela ver. A moça tinha poder.