Quando o Brasil enfim superou os tenebrosos anos de ditadura militar criou-se na população a esperança de que, com a redemocratização, os problemas seriam solucionados. Especialmente os da inflação, que dizimava vencimentos e gerava extrema penúria. Nada mais emblemático deste período que a figura que entrou na História do país como o “fiscal do Sarney”.
O período a que me refiro é 1986, em seguida à posse do ex-senador José Sarney na Presidência da República. Vice da chapa de Tancredo Neves, Sarney assumiu com a morte do presidente que jamais foi presidente.
Na época, eu era repórter de “O Fluminense”. Meu parco salário era corroído dia a dia pelo ímpeto inflacionário. Sorte que ainda vivia com meus pais, sem gastos com comida e contas do lar. Milhões não tinham a mesma sorte. Entre eles um pobre infeliz que certo dia adentrou, muito humilde, a Redação do jornal diário.
Vale um parêntese. Ao assumir, Sarney, para enfrentar a inflação, baixou um pacote econômico que congelava todas as mercadorias. Um quilo de arroz num dia não poderia custar mais no dia seguinte, como era corriqueiro.
Para o plano dar certo, o presidente convocou cadeia nacional e rogou aos “brasileiros e brasileiras” (expressão costumeira no seu linguajar) que fiscalizassem o comércio. O consumidor deveria exigir do comerciante a nota da despesa. Assim, poderia checar se estaria havendo a majoração dos preços entre uma compra e outra.
Surgia o “fiscal do Sarney”. Todos os dias jornais, rádios e TVs destacavam homens e mulheres comuns que, munidos de notas fiscais, acusavam os maus comerciantes de boicote ao plano econômico.
De um dia para o outro os “fiscais do Sarney” tornaram-se os principais personagens do país. O “Jornal Nacional” perfilava gente do povo que, imbuída da autorização dada pelo presidente da República, acusava a torto e a direito. Lojas de maus comerciantes eram saqueadas e incendiadas. Alguns deles levavam surras próximas ao linchamento. Reputações eram destruídas em minutos.
“O Fluminense” determinou prioridade máxima à cobertura das ações dos ditos fiscais. Todos os dias o chefe Gilberto Fontes enviava jornalistas para os mais diversos pontos da Grande Niterói a fim de descobrir quem estava boicotando o esforço governamental de recuperação econômica.
Certa manhã estava eu na Redação quando, no portal de entrada, postou-se um senhor modesto com um envelope na mão. Tímido, não entrava nem falava nada.
Chamei-o: “O que manda, chefe?”.
“Gostaria de mostrar algo ao senhor”, redarguiu.
“Pois não, venha aqui, por obséquio.”
O cidadão chegou à minha mesa e abriu o envelope. Dele tirou duas notas fiscais. Uma de três dias antes. A outra, da véspera. As notas traziam o preço cobrado pelo quilo de arroz em uma venda em Várzea das Moças. As provas eram evidentes: o vendeiro elevara o preço do cereal a despeito do decreto presidencial.
Estava ali, na minha frente, um legítimo “fiscal do Sarney”. Sorte a minha, não teria mais que ir à rua para a sacal busca de personagens. O “fiscal do Sarney” veio até mim, e eu não o deixaria ir embora sem um relato minucioso do que acontecera.
Antes de começar a entrevistá-lo disquei o ramal da fotografia. Era necessário registrar a presença do “fiscal do Sarney” na Redação. Veio de lá o galã Marcelo Regua, à época provido de farta cabelereira (extinta já há algumas décadas). O descabelado Regua fotografou o cidadão sentado, em pé, meditativo, sorridente, sério, sempre mostrando as duas notas de valores díspares.
O homem me contou que era líder comunitário em remoto lugarejo na zona rural da cidade. Ao flagrar o comerciante trambiqueiro, decidiu denunciá-lo, com o apoio dos vizinhos, também prejudicados.
“O senhor pode ficar tranquilo, amanhã o jornal publicará uma grande reportagem denunciando esse bandido”, assegurei. “Pode voltar para a aldeia e avise a vizinhança.”
Simples, ele sorriu, agradeceu e partiu. Graças ao bom Deus era um sujeito pacato, pouco afeito a vinganças. Isso porque a reportagem não saiu como ele gostaria. Aliás, nem chegou a sair. Fosse um homem violento, voltaria ao jornal e quebraria tudo.
Para piorar a situação, “O Fluminense” publicou a foto dele com grande destaque. Na página de polícia. O “fiscal do Sarney” com as duas notas nas mãos tinha o semblante muito sério. A legenda era definitiva, não dava margem a dúvidas. Dizia textualmente: “Fulano de Tal (não lembro o nome dele) foi preso”.
Não havia naquela página (e em nenhuma outra da edição) qualquer matéria que trouxesse informações sobre a razão do suposto encarceramento. Era uma foto e nada mais. Mas seu personagem era identificável: o nome estava correto.
Passados quase 40 anos, ainda imagino o impacto que a publicação causou na comunidade. O líder deve ter chegado em casa, juntado os vizinhos, falado que denunciara o birosqueiro e que no dia seguinte “O Fluminense” publicaria reportagem completa. O jornal esgotou-se logo ao amanhecer naquela afastada região.
A falha ficou por isso mesmo. Ninguém se dedicou a apurar quem errara. Até porque desconfio que o autor tenha sido o editor que atendia pela alcunha de “Rima Rica”, muito amigo da direção do Grupo Fluminense de Comunicações. Quanto ao “fiscal do Sarney”, nunca mais vi nem ouvi falar.
(Na próxima coluna abordarei a revolta dos gráficos diante dos atrasos salariais.)