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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
Publicado

A primeira mentira

jornal o fluminense

No dia 1º de novembro de 1983 o telefone tocou lá em casa. Era pra mim. Um homem com voz estridente identificou-se.

“Aqui é Oséas de Carvalho, editor de ‘O Fluminense’. Você se candidatou a uma vaga de estagiário?”, perguntou.

Havia me candidatado seis meses antes. Nem me lembrava mais. Havia ido à sede do jornal chamado pelo superintendente Ephren Amora. O cara tinha o mesmo dentista que meu pai. O velho falou com o dentista, que falou com Ephren sobre um estudante de jornalismo que se formaria no fim daquele ano e procurava estágio.

Na conversa, o superintendente não me prometeu nada. Fui embora, passaram-se os meses, esqueci aquilo, fui tratar da vida. Até que Oséas telefonou.

“Sim, me candidatei”, balbuciei.

“Você sabe escrever?”, ele rebateu.

Eu era tão desinformado sobre as coisas de jornal que pensei que ele me perguntava se era alfabetizado. Logicamente, ele queria saber se eu tinha conhecimento de como redigir textos jornalísticos.

“Sei escrever, claro”, respondi, fingindo-me indignado com a suspeita que era analfabeto.

“Então você começa amanhã”, sentenciou o editor.

Aí contei minha primeira mentira a um chefe. O amanhã era 2 de novembro, feriado, Dia de Finados. E eu já tinha compromissos: praia, futebol, namorada etc.

“Amanhã eu não posso. Vou levar minha mãe ao cemitério para visitar o túmulo do meu avô, que morreu outro dia.”

“Então começa depois de amanhã”, determinou ele e despediu-se.

Na verdade, meu avô João Machado morrera há quase dez anos. Seus restos mortais repousavam em algum cemitério de Manaus, a 4.230 km de distância do Rio.

Fui trabalhar em 3 de novembro. Não sabia nada de nada. A chefe de reportagem, que chamava-se Isabel, me mandou fazer a suíte (é claro que eu não sabia o que era) da manchete daquele dia, sobre um incêndio na Câmara de Vereadores.

Fui a pé da rodoviária, onde ficava a sede do Grupo Fluminense Comunicação, à Câmara, na Avenida Amaral Peixoto. Não sabia que poderia ter pedido um carro para me levar.

Apurei alguma coisa, sabe-se lá como, e voltei para a Redação. A matéria tinha três vias: a original e duas cópias. Usavam-se folhas de carbono para obter as cópias. A pessoa colocava três laudas na máquina datilográfica. Entre elas, os carbonos. Escrevia na original e as cópias formavam-se simultaneamente.

O problema é que eu nem sequer sabia colocar o carbono entre as laudas. Coloquei-as do lado errado – e as cópias saíram no verso das laudas datilografadas.

Devo ter virado piada na Redação porque no dia seguinte o pauteiro Gilberto Fontes me ensinou com toda paciência como utilizar o carbono devidamente.

Assim foi meu início profissional. Agora “O Fluminense” acabou. Uma morte que levou quatro décadas para se consumar. Naquela época os salários já atrasavam muitos meses. Os funcionários faziam vales. Quando saíam os salários, muitos não tinham mais nada a receber. Uma bagunça total.

A fila dos vales dava voltas no corredor do setor financeiro. As quantias vinham em notas miúdas, às vezes moedas, recebidas talvez pouco antes nos classificados.

Gilberto lembra bem dessa época, pois era um habitual frequentador da fila do vale.

“Assim, eu recebia por semana, com adiantamento (e sem atraso). A maioria dos coleguinhas evitava pedir vale, achando que se enrolariam. É que, em vez de receber a semanada, pagar seus boletos e fazer compras, pegavam a grana e iam pro boteco do lado.”

O bem informado jornalista lembra até do colega que emprestava a juros para os mais encrencados.

“[O fotógrafo] Jurandir, como bom cearense, tinha emprego também nos Diários Associados. Então, ele pedia vale no ‘Fluminense’ para emprestar dinheiro a juros pros otários que temiam se desorganizar com o vale. Juruna [apelido do velho Jurandir, que morreu há pouco tempo, quase centenário] pedia que eu fizesse as contas dos juros que cobrava. Era um agiota modesto. Cobrava somente o equivalente ao rendimento da caderneta de poupança no mês.”

Como o inesquecível Juruna de Maricá, “O Fluminense” se foi, após uma agonia prolongada.

Ficam as lembranças e os amigos queridos que fiz lá, como o onipresente Gilberto, o já citado Juruna de Maricá, Aissar Elias Jorge (o popular Turco), Simone Botelho, Deborah Bruno, Elaine Lima, Irany Tereza, Marcelo Regua, Luiz Prado, Salomão Sant’Anna, Antonio Werneck, Gustavo Goulart, Jane Duarte, Aparecida Rollemberg, Antonietta Ramos, Rosita Cucco, Solange Duarte, Mário Dias, Octavio Guedes, Walmyr Peixoto,  Baleixe Filho, Aurita Pinheiro, Múcio Bezerra, William de Oliveira, Gilson Monteiro e alguns outros.

 

 

 

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