Niterói por niterói

Pesquisar
Close this search box.

Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
Publicado

A madrugada em que Erasmo Carlos acordou minha mulher

erasmo-carlos-scaled
Erasmo Carlos, o Tremendão que foi um gigante na arte e na vida. Foto/Divulgação

Faz muito tempo. Primavera de 1997, 25 anos então. O telefone tocou de madrugada lá em casa. O fixo, claro. Não havia celular na época (não com a gente, pelo menos). Telefonema em horas tardias ou é engano ou é notícia ruim. O aparelho ficava na cabeceira da minha mulher.

“Alô”, falou Silvia.

Não ouvi o que diziam do outro lado. Mas ela, com raiva, me avisou.

“Tem um maluco dizendo que é Erasmo Carlos. Ele quer falar com você. É cada rolo que você me arranja! Pelo menos não é a Gretchen!”, vociferou.

Pulei da cama. Era mesmo o Erasmo. Eu havia passado uma tarde sensacional na casa dele na Barra da Tijuca. Trabalhava na “Folha de S.Paulo”. Havia proposto uma entrevista com ele, que começava a compor com parceiros variados, dando fim à exclusividade com Roberto Carlos.

Na casa da Barra, Erasmo me falou que já tinha 15 músicas com Marcos Valle e algumas com o guitarrista Rick Ferreira. Nos anos que vieram, ele concluiu parcerias com Nelson Motta, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Samuel Rosa e até Marcos Sabino, aqui de Niterói. A fidelidade ao Rei foi rompida. Tive o privilégio de ser o primeiro a revelá-la, imagino.

Na entrevista, pedi a Erasmo uma letra nova, para publicarmos com a entrevista. Ele disse que procuraria em seu estúdio, na própria casa, e que me ligaria para passar os versos.

Fiquei meio descrente, mas, além de simpático ao extremo, o Tremendão honrava seus compromissos. Na madrugada, bebendo a vodka que tanto apreciava, ele encontrou a letra de “Frases do silêncio”, que escrevera para a melodia de Marcos Valle. A canção veio a ser gravada por Nana Caymmi.

No telefonema, Erasmo pediu para me ditar a letra. Corri para a sala, atendi na extensão e, morto de sono, anotei verso por verso. Ao final, agradeci a consideração do grande artista. E voltei a dormir.

“Erasmo Carlos, você acha que sou trouxa…”, ainda escutei os resmungos de Silvia antes de dormir de novo.

No dia seguinte, fui para a Redação com o papelucho na mochila. Ao passar os versos para o computador, constatei que, na semiescuridão em que anotara,  havia alguns garranchos ilegíveis. Depois de muito quebrar a cabeça, conclui por algumas palavras. A “Folha” publicou a letra. O fato é que Erasmo jamais reclamou. Ou eu acertei ou virei, sem querer, parceiro de dois dos maiores craques da música popular.

Desde que era repórter de “O Fluminense”, meu primeiro emprego no jornalismo, acostumei-me a conversar com cantores e compositores. Lembro ter entrevistado na Redação artistas como Eduardo Araújo, sucesso na Jovem Guarda com “O Bom” e hoje um lamentável bolsonarista.

Também conversei com Mongol, eterno parceiro de Oswaldo Montenegro. Mongol, que morreu precocemente na pandemia, estava lançando um disco. Ele me contou na ocasião que acabara de compor com Luiz Galvão, o genial letrista dos Novos Baianos. Galvão morreu este ano. Ao que sei, a canção permanece inédita. Talvez perdida para sempre, já que os autores não estão mais aqui.

Outro que entrevistei em “O Fluminense” foi o fabuloso trompetista Barrosinho, ex-Banda Black Rio. Ele recém-lançara o LP “Maracatamba”, com que viria a se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Barrosinho também já subiu.

Em “O Globo”, na “Folha” e no “Estadão”, entrevistei muita gente da música. Ao que me lembro, Tom Jobim umas duas vezes, Caetano Veloso, duas ou três, Dorival Caymmi, Roberto Carlos, Gilberto Gil, João Bosco, Luiz Melodia, Fagner, Aldir Blanc, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Zé Rodrix, Paulinho da Viola, Tavito, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcellos, Paulo Rafael, Arnaldo Brandão, Paulo Sérgio Valle, Danilo Caymmi,  Nelson Motta, Aquiles Reis, Djavan, Byafra, Hélio Delmiro, Moacyr Luz, Guinga, Hermínio Bello de Carvalho, Lobão, Fernando Brant e muitos outros.

Mas nenhuma delas me deu tanta satisfação quanto a de Erasmo Carlos. Senti muito sua morte.

 

 

COMPARTILHE