Uma série de incêndios em prédios populares apavorava São Gonçalo na primeira metade da década de 80 do século passado. A polícia não conseguia identificar a autoria dos ataques às chamadas cabeças-de-porco. Falava-se em alguém interessado em abrir espaço para construções mais modernas em bairros densamente povoados. Mas os investigadores não descartavam a ação homicida de um psicopata piromaníaco.
Na Redação de “O Fluminense” o incumbido de acompanhar os casos foi o jornalista Erly Lopes, veterano repórter, notabilizado pelo esmero na apuração, sempre rica em detalhes dos assuntos que cobria. Geralmente reportagens policiais.
Nunca mais encontrei Erly após deixar o jornal. Uma pena, era um cara adorável. Soube há dias que nos deixou já faz alguns anos. À época deste relato, era um senhor de farta bigodeira grisalha, o que o assemelhava a um bandoleiro do Velho Oeste perdido nos desfiladeiros da Praça Zé Garoto.
Da forma como gostava de falar, Erly caiu dentro no caso dos cortiços incendiados. Pass
Intrigado com a sequência de incêndios, o repórter consultou um babalorixá seu amigo, afamado nos limites do município com a vizinha Itaboraí. Tentava descobrir, por todos os meios, quem estava por trás dos ataques a fogo nos prédios populares. O pai-de-santo o orientou a ficar atento aos que conseguiam escapar das chamas. Talvez ali houvesse uma história que interessasse aos leitores do diário niteroiense, aconselhou o candomblecista.
Assim como a polícia, Erly nada descobriu. Mas seus textos ficaram na memória dos redatores que os preparavam para a edição.As reportagens eram tão detalhistas e minuciosas que davam aos que as liam a impressão de que o repórter estava, ele próprio, preso entre as labaredas que destruíam a cabeça-de-porco.
Nos relatos de Erly havia sempre dois sobreviventes. Eram personagens fixos das reportagens. Um deles, o Tocha Humana (assim mesmo, com maiúsculas), deixava a construção em desespero, com o corpo envolto em chamas. Nas vascas da agonia, o Tocha Humana emitia gritos pavorosos, antes de cair no asfalto para as últimas convulsões. Bem, não era, na verdade, o que podemos chamar de sobrevivente.
O segundo personagem era bem mais atraente. De acordo com os textos de Erly, a multidão que acompanhava o incêndio vibrava quando a Loura Nua (também com maiúsculas) aparecia. Ela esteve presente em todos os relatos do arguto repórter.
Corpo escultural, a Loura Nua surgia pouco antes de o sobradão ruir entre fagulhas, fumaça e línguas de fogo. Talvez por milagre, não trazia na pele alva as chagas normalmente provocadas por queimaduras. Nem sequer chamuscada ela estava quando surgia, para deleite das testemunhas madrugadoras.
A Loura Nua virou uma espécie de lenda gonçalense. Jamais foi identificada. Muitos supunham tratar-se de um fantasma que vagava pelas cabeças-de-porco de São Gonçalo. Ao escapar das labaredas, ela corria em desabalada carreira rua afora até desaparecer aos poucos na escuridão.
A fama de homem afeito aos mistérios do desconhecido proporcionou ao jornalista um ganha-pão extra, já que o salário em “O Fluminense”, vamos admitir, era irrisório e, pior, costumava atrasar.
Auto alcunhado Erly Khan, o repórter atendia populares para consultas esotéricas.Ele era um místico desde garoto. Reza a lenda que afastava maus-olhados, olho-gordo e os malévolos quebrantos.
Ao menos uma vez seus serviços foram requisitados por um colega. Um velho editor de Cidades, jornalista de semblante sério, ar tristonho, chamou Erly em um canto da espaçosa redação. Os dois confabularam por alguns minutos, aos sussurros.
Ao se despedir, Erly falou em voz alta o suficiente para ser ouvido pelos colegas mais próximos.
“Fulano, vai na feira de Neves às seis da manhã. Procura lá o Índio Velho. Fala que é meu amigo. Compra um litro da garrafada. Vai resolver seu problema. A garrafada do Índio Velho é batata!”
(Na próxima coluna, recordarei o júri popular que acompanhei no fórum de São Gonçalo como repórter de “O Fluminense”. Até o juiz brigou.)
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