30 de dezembro

Niterói por niterói

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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
Publicado

A interrupção do pagode enfezado no Morro do Estado

Morro do Estado registrou cinco tiroteios em novembro. Foto: leitor
O Morro do Estado, no Centro de Niterói

Como eram as favelas de Niterói há 40 anos? Algumas enormes já, com infraestrutura muito precária de serviços (não mudou nada, né?). Neste caso está o Morro do Estado, no Centro. Um aglomerado de prédios, casas e barracos que se avista como uma espécie de mural a partir do estacionamento do Plaza Shopping, por exemplo. A favela já era assim na primeira metade dos anos 80. A expansão, como ocorreu no Rio, foi vertical. Os espaços do morro estavam ocupados desde aquela época.

Outras tinham, então, ambientes de convívio familiar e serviços públicos eficientes. Um exemplo é o morro do Cavalão, que separa Icaraí e São Francisco. O crescimento desordenado do Cavalão e seu domínio por traficantes retrata a ineficiência da atuação do poder público em uma comunidade pobre.

Como repórter de “O Fluminense” a partir de 1983 e até 1985 percorri muitas favelas niteroienses. No Cavalão, conheci um morro tranquilo, com creche, abastecimento de água e posto policial. A favela ainda não havia crescido em direção ao Vital Brazil. O domínio era de lideranças comunitárias antigas, de famílias ali estabelecidas havia décadas. A marginalidade ficava na encolha. A boca de fumo não funcionava à luz do dia, como acontece hoje. Os líderes eram respeitados.

Como pode o poder público não ter avançado em melhorias ali? O Cavalão é um morro pequeno, estreito. A densidade demográfica era pequena. A comunidade poderia ser o exemplo de uma ação social digna e exitosa. Nada disso aconteceu.

Uns dez anos depois, a situação no morro mudara completamente. Por volta de 1993 ou 94, da varanda do prédio em que morava perto do canal da Ary Parreiras, avistei um helicóptero da polícia dando um rasante sobre o trecho da favela entre a Roberto Silveira e o Vital. Os barracos já tinha chegado ali.

Rajadas de tiros foram disparadas por policiais sobre a mata. A seguir, sai para trabalhar. O comando da operação estava bem perto do meu prédio. Ouvi um PM dizer ao oficial (talvez major ou tenente-coronel) que o helicóptero tinha “quebrado quatro vagabundos”. O chefe comemorou o “sucesso” da PM na favela.

No morro do Estado, acompanhei os funcionários da companhia Cerj empenhados em levar iluminação pública à favela. Até então os moradores não tinham luz elétrica, acreditem. Os empregados da estatal de eletricidade carregavam nos ombros os postes de concreto. Sinceramente, não sei como aguentavam o peso, pois tinham que subir e descer trechos íngremes em meio a porcos e cabras. Sem falar nas curvas e desvios, grande parte deles em ângulo reto.

A população os ajudava, era um mutirão informal. Vi homens deixando um pagode enfezado para auxiliar o pessoal da companhia elétrica.

No hoje populoso morro do Preventório, em Charitas, percorri certa vez a parte alta da favela, ainda tomada pelo mato. Hoje o ir e vir na comunidade é controlado pelo tráfico de drogas, com bandidos violentos provenientes do Rio, pelo que contam os moradores mais antigos.

Em um ano eleitoral, pintaram em letras brancas garrafais o nome de um candidato na pedra lisa do alto do Preventório. Fui lá fazer a reportagem. Não queria passar por dentro da favela, pois teria que subir por trilhas e degraus de terra batida. Seria muito cansativo, ainda mais que acompanhava-me o veterano Guarará Siqueira, fotógrafo com mais de 70 anos. Talvez o caminho fosse duro demais para ele.

A solução foi seguir no carro do jornal rumo ao Parque da Cidade. No topo daquele ladeirão há uma trifurcação. À direita, o caminho vai até os mirantes. À esquerda, a descida leva ao bairro do Maceió. Ao centro, há uma estradinha mequetrefe que eu não sabia onde iria dar. Mas, pela geografia da montanha, teria que passar pelo alto do Preventório.

Por ali enveredamos. Uma buraqueira atroz. Mata cerrada dos dois lados. Em uma clareira avistei um despacho de macumba que me impressionou. Nem em Madureira, reduto umbandista na Zona Norte carioca, costuma se encontrar tal quantidade de oferendas aos orixás.

No alto do morro, vimos um casebre com paredes de lama ressacada, tal a pobreza. Dentro, crianças assistiam a desenhos na TV colorida. A imagem da televisão era excelente. Não havia antenas, mas o aparelho, talvez pela altitude, captava os canais bem melhor do que nos prédios residenciais lá embaixo. Era um barraco só, no meio do nada, cheio de crianças, sem adultos.

A paisagem era belíssima: Baía de Guanabara em frente; São Francisco, Charitas e Jurujuba aos nossos pés; do outro lado da montanha, a praia e a lagoa de Piratininga. Mas, como estávamos ali para achar a pichação clandestina, deixamos o visual de lado e seguimos a pé por uma trilha bastante inclinada, morro abaixo.

A descida foi dificílima. A trilha serpenteava entre touceiras de capim-gordura bem mais altos que a gente. Aquilo cortava os braços que nem navalha de malandro da velha Lapa. Não se via nada. Para piorar, eu carregava o pesado equipamento de Guarará. O velhinho estava cansado demais.

Finalmente chegamos à pedra lisa vertical “atacada” pelo político porcalhão. Fizemos o registro e escalamos o morro de volta. Dias depois a pichação foi apagada. De vez em quando o jornalismo dá certo.

 

 

 

 

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