Niterói por niterói

Pesquisar
Close this search box.

Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
Publicado

A filial do inferno

freicaneca
O horror dos presídios no Brasil: superlotação nas celas

Desde pequeno tenho para mim não haver coisa pior que cadeia. Grande parte da humanidade teme ver o sol nascer quadrado. Se não houvesse a prisão, as ruas seriam terra de ninguém, campo de batalha. A solução das questões mais triviais envolveria pernada, tiro e facão. O medo de perder a liberdade faz o ser humano manter-se do lado do bem, na medida do possível. Reforcei esta certeza no período em que fui repórter do jornal “O Fluminense”, há quatro décadas.

Em um sábado pacato, eu plantonista na Redação, as rádios (não havia internet, muito menos canal de TV só de notícias) anunciaram o início de uma rebelião sangrenta no presídio da Rua Frei Caneca, no Catumbi, região central do Rio.

Não teve jeito. Lá fui eu, acompanhado do fotógrafo Guarará Siqueira, que nos anos 30, garoto novo, vangloriava-se da amizade que mantinha com as polacas da velha Lapa. Alquebrado, o velho Guará quase não conseguia carregar seu material de trabalho, tão velhinho estava.

Ao chegarmos às cercanias do horroroso complexo (oito pavilhões repletos de criminosos), todo cercado pela polícia, subimos o vizinho morro de São Carlos na tentativa de fotografar os rebelados. Do alto da favela, vi a cena que confirmou a impressão de que nada deve ser pior que o xilindró. De cada uma das milhares de janelas da penitenciária pendiam pares de pernas dos condenados. Era assim que eles passavam o dia. Olhando para o lado de fora, sentados nas janelas, agarrados às grades e com as “canetas” penduradas no abismo.

A rebelião, recordo-me, logo foi controlada. A Polícia Militar ocupou os pavilhões. Os detentos voltaram às celas. Antes, quebraram todas as lâmpadas. O Frei Caneca, ao entardecer, estava no mais completo breu.

Mesmo assim algum irresponsável chefe do policiamento autorizou a entrada dos repórteres e fotógrafos no pátio do complexo. Não satisfeitos, nós, também sem qualquer resquício de responsabilidade, insistíamos em ingressar em um dos recém-apaziguados pavilhões. O pátio era pouco para nossa pretensão de bem informar o cidadão. Enchemos tanto o saco dos policiais e agentes penitenciários que foi montada às pressas uma estratégia de proteção às equipes dos jornais, rádios e TVs.

Não lembro o andar a que chegamos ao subir uma interminável escadaria tomada por detritos, restos queimados de barricadas e poças de sangue coagulado. Lembro, sim, do espanto que senti quando notei o que nos esperava: um sinistro corredor longuíssimo, estreito, em total escuridão, com celas em ambos os lados.

Dentro das celas, talvez centenas de homens gritavam, ameaçavam, batiam nas paredes. Policiais com metralhadoras e fuzis escoltaram os repórteres em meio às trevas e à algazarra. O chão do corredor era uma vala profunda, onde corria o esgoto do presídio. Imagino a quantidade de ratazanas que habitavam aquele pestilento ambiente de miséria.

Os jornalistas andavam devagar, com as pernas abertas, de modo a evitar a queda na imundície. Talvez a centímetros dos facínoras encarcerados sabe-se lá há quantos anos.

Antes do início da caminhada, um agente fez o alerta.

“Não pisem em nada em cima do valão, mesmo que esteja tapado. Só nos cantos, no cimento. Não vamos nos responsabilizar se um de vocês quebrar a perna ou pegar peste bubônica. Aqui dentro é cada um por si. É mais fácil um fariseu ser recebido no Santo Reino de Deus que eu entrar na vala para tirar um de vocês! Preparem-se! Vocês estão entrando na filial do inferno!”

Obediente, busquei tomar as precauções devidas. O chão escorregadio dificultava o deslocamento. Cada passo era um suplício. O cheiro nauseabundo e o calor aguçavam aquele flagelo. Os cinegrafistas, com maquinário pesado nos ombros e costas, desabafavam com palavrões e impropérios.

Mais ou menos na metade do corredor, iluminado por lanternas de mão cujas pilhas pareciam estar nas últimas, ouviu-se um grito de pavor e o barulho de algo caindo em uma espécie de pântano.

Imediatamente, os presidiários explodiram em gargalhadas convulsas. O plano deles dera certo. Esticaram folhas de papelão sobre um trecho do canal de esgoto. Um jornalista desatento pisou em cima e caiu lá dentro.

Pobre Guarará. Enterrou-se até a cintura na lama grossa e fétida que lotava a vala. Os colegas o retiraram porque os guardas cumpriram a promessa de não ajudar quem desabasse lá dentro.

Dessa vez, o malandro da Lapa antiga – amigo de meretrizes e cafetões, dono de uma afiada navalha e apreciador do coquetel rabo-de-galo – se deu mal, muito mal.

O complexo penitenciário da Frei Caneca não existe mais. Foi implodido em 2010. Dele só resta o portão de pedras do século 19. Guarará também já está em outro patamar da existência. Certamente ao lado dos malandros e marafonas da Lapa dos cabarés e pardieiros.

 

 

COMPARTILHE