Meninos, eu vi.
Em 2006, em viagem à China, vi o país parar duas vezes. Numa, para o treino do desfile militar pelo aniversário do centenário Partido Comunista, que fundou e comanda com mão de ferro a República Popular da China até hoje.
Na véspera da apresentação militar, a principal avenida de Pequim foi literalmente fechada para o treinamento. Mas não apenas as pistas. Também todos os prédios, incluindo hotéis. Eu estava em um deles. Ninguém pôde entrar ou sair a partir das 14h e até o dia seguinte. Nem para passeios, para comer, para nada. Pior: ninguém podia chegar na janela do quarto sequer. Funcionários do hotel diziam até que havia atiradores prontos para acertar quem ousasse burlar as ordens do PCC, o Partido Comunista Chinês.
A segunda vez também me impressionou: estava sendo realizado, naquele dia, um exame escolar importantíssimo na China. Digamos que o equivalente ao Enem daqui, que neste domingo (21/11) deve ser “enfrentado” por mais de 3 milhões de estudantes em busca de vaga nas universidades públicas. Digo enfrentado por causa da bagunça que virou o exame, com debandada no órgão responsável pela realização da prova e o sofrido adiamento em 2020, na pandemia.
O que eu vi? A China praticamente parar por causa do exame dos estudantes. Uma espécie de feriado com o menor número de pessoas possível nas ruas e carros proibidos de buzinar. Isso: ninguém podia fazer barulho para não atrapalhar os alunos na prova. O silêncio na imensa e altamente povoada Pequim era impressionante. E respeitoso.
Mas por que estou contando isso? Porque estamos às vésperas do Enem, porque a China é uma ditadura, porque o Presidente Bolsonaro comanda um retrocesso deliberado na Educação e resolveu animar a massa “jogando merda” no Enem, além de ser obcecado por ditaduras.
(Steve Bannon, indiciado esta semana pela invasão do Capitólio e guru de seguidores de Trump e Bolsonaro, explicou certa vez seu método de desviar a atenção de problemas reais espalhando ódio pelas redes sociais: “A oposição real é a mídia. E a maneira de lidar com eles é inundar a zona de merda”)
Essa estratégia, usada pelo Presidente e seus zeros sempre que estão em perigo, não teria sido a principal razão, porém, das “merdas” jogadas contra o Enem.
Ali ele falava sério. Quer mesmo acabar com o exame e um suposto viés esquerdista que diz enxergar nas provas.
Pois Bolsonaro confessou que estava deixando o Enem com “a cara do governo”. Nem precisava admitir. Todo mundo já tinha percebido. Desleixo, incompetência, ingerência política, aparelhagem, foram muitas as lições de que o Ministério da Educação passou a ser a cara do Governo Bolsonaro desde que ele assumiu a Presidência.
Agora reportagem da Folha de S.Paulo revelou que a ameaça de deixar o teste com a “cara do Governo” incluiu um pedido do Presidente ao Ministro Milton Ribeiro para que o exame tivesse questões que tratassem o golpe militar de 1964 como revolução. Segundo integrantes do governo, o pedido de Bolsonaro teria ocorrido no primeiro semestre.
Ainda segundo a Folha, o Ministro comentou o assunto com assessores mas não teria conseguido levar o pedido adiante porque as questões do exame passam por longo processo de elaboração.
Bolsonaro defende a ditadura militar (1964-1985), é fã de torturadores e critica o Enem antes mesmo de chegar ao Planalto. Acha que pode apagar a História e que vai ficar para sempre no poder? Com certeza não. Ele sabe o tamanho que tem. Mas é da sua natureza não só espalhar “merda” como também fazer “merda”, desmontar o que funciona.
Procurados pela Folha, MEC e Palácio do Planalto não responderam sobre o pedido para trocar “golpe” por “revolução” em questões do exame.
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Voltando à China: a ditadura do PCC cala muitas vozes. Cerceia liberdades e expressões. É terrível. Toda ditadura é horrível, desumana, cruel. Mas o respeito aos estudantes e professores naquele dia me ensinou um pouco sobre um dos motivos dos bons resultados que o país colhe na Educação.
Que nossos estudantes brasileiros tenham menos barulho para a prova deste domingo!