Oscar Niemeyer estava em seu escritório, no Rio de Janeiro, quando ouviu uma estagiária perguntar a uma colega: “Você já leu Eça de Queiroz?” E a outra respondeu: “É filho da Raquel de Queiroz?”
Daquele dia em diante, Niemeyer passou a defender a necessidade de uma profunda mudança, com urgência, na educação dos jovens no Brasil.
“De outra forma, a maioria desses jovens vai ampliar este mundo dos especialistas que se limitam aos assuntos de sua profissão. O resto… a pobreza, a violência, a luta política, a defesa da soberania nacional e da América Latina, tão ameaçadas, não os interessaria muito, provocando a indignação necessária. E esse desinteresse pelos graves problemas da humanidade, deixados de lado como se eles pudessem ser enfrentados e resolvidos sem a sua participação, me entristece”, diz ele em seu livro “O Ser e a Vida”, de 2007.
Há quem acredite que ninguém morre comunista (no sentido mais amplo de igualdade) porque a vida se encarrega de endurecer a nós todos. Niemeyer morreu comunista, viveu e morreu fiel a seus princípios.
Deixou uma herança de mais de 500 obras, um patrimônio da humanidade, e o legado da defesa da educação, do combate à pobreza e à violência.
O “ser” Niemeyer e “a vida” do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que completa 100 anos neste 25 de março, se encontram hoje novamente. No Caminho Niemeyer, Centro de Niterói. Nenhum lugar poderia ser mais emblemático para a comemoração do centenário do primeiro partido nacional do Brasil.
Foi ali perto, numa casa na Rua Visconde do Rio Branco, que nove delegados, dos 11 que representavam os Grupos Comunistas espalhados pelo Brasil, se reuniram clandestinamente no dia 25 de março de 1922. Nascia então o PCB (Partido Comunista do Brasil, depois Partido Comunista Brasileiro), um movimento que teria enorme influência na vida política do país, mesmo tendo vivido os seus primeiros 60 anos na clandestinidade.
Ainda hoje, passados 100 anos e com o mundo cada vez mais redondo e conectado, a extrema-direita evoca “a ameaça” que representariam os comunistas “que comem criancinhas”. Um Olavo de Carvalho da vida, porém, teria de nascer não cem, mas mil vezes, um milhão de vezes, para demonstrar fidelidade tão arraigada a princípios e produzir uma obra tão genial como a que Niemeyer nos deixou.
Mas voltando ao 25 de março de 1922. Entre aqueles nove homens (os da foto aí do alto) que se reuniram no Centro de Niterói havia operários, barbeiros, alfaiates e o jornalista Astrojildo Pereira. Ali fundaram a Seção Brasileira da Internacional Comunista, o Partido Comunista do Brasil (PCB), que em 1962 se reorganizou e adotou a sigla PCdoB, sem sem divisões internas que, para os antigos, jamais foram sanadas. O partido só viria a ser legalizado após o fim da ditadura militar.
Niemeyer se filiou ao PCB em 1945 por influência do amigo militar e político brasileiro, então secretário-geral do PCB, Luís Carlos Prestes. Foi na casa do arquiteto no Rio que Prestes montou um comitê do partido.
Ficou amigo do cubano Fidel Castro e de outros líderes comunistas mundiais. Na ditadura, exilou-se na França e de lá visitou a então União Soviética. Num discurso em 2007, quando pela primeira vez admitiu a possibilidade de deixar o cargo por doença, Fidel afirmou:
“Penso como Niemeyer, que se deve ser consequente até o final”.
A frase foi repetida na carta de renúncia do comandante cubano em 2008, quando passou o cargo ao irmão Raul. Apesar dos inúmeros problemas e da falta de liberdades em Cuba, Niemeyer jamais criticou o amigo Fidel.
Os comunistas estiveram engajados em movimentos como a Coluna Prestes, a defesa do petróleo e da soberania nacional, as Diretas Já e a luta pelo voto, contra a ditadura militar, lutando na Guerrilha do Araguaia, pelos direitos da população negra, mulheres, LGBTQI, a promoção da igualdade.
Hoje o PCdoB opera como um satélite do PT, e a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato petista ao Planalto, é esperada neste sábado (26) no Festival Vermelho, em Niterói.
No meio do Caminho Niemeyer, onde será realizada a festa, fica o Museu de Arte Contemporânea (MAC), projetado pelo grande arquiteto. Sobre o prédio que acabou virando símbolo da cidade, Niemeyer escreveu:
“Às vezes um projeto custo a se definir. Outras, ele surge de repente como se, antes, nele nos tivéssemos detido cuidadosamente.
E isso se verificou com esse projeto. O terreno era estreito, cercado pelo mar, e a solução aconteceu naturalmente, tendo como ponto de partida o apoio central inevitável.
Dele, a arquitetura decorreu espontânea como uma flor.
A vista para o mar era belíssima e cabia aproveitá-la. E suspendi o edifício e sob ele o panorama se estendeu mais rico ainda.
Defini então o perfil do museu. Uma linha que nasce e sem interrupção cresce e se desdobra, sensual, até a cobertura.
A forma do prédio, que sempre imaginei circular, se fixou e, no seu interior, me detive apaixonado.
À volta do museu criei uma galeria aberta para o mar, repetindo-a no segundo pavimento, como um mezanino debruçado sobre o grande salão de exposições.
E me preocupei com os interiores, desejoso de que fossem bonitos e variados, convidando os visitantes para conhecê-los melhor.
No terreno, minha ideia foi acentuar a entrada do museu, desenhando a rampa externa. Um passeio ao redor da arquitetura.
E senti que o museu seria bonito, tão diferente dos outros que ricos e pobres teriam prazer em visita-lo”.
Um país em que ricos e pobres possam viver com prazer, como escreveu o comunista Niemeyer, foi o sonho do partido um dia. Foi o sonho de Niemeyer até a morte. Quem mais está disposto a sonhar este sonho hoje?