O antropólogo Roberto Da Matta, nosso vizinho, que dedica anos de estudo a desvendar a alma do brasileiro, bem poderia analisar o nosso comportamento diante da Ômicron, a mais recente e mais contagiosa variante do coronavírus. Ele que soube olhar de forma tão contundente para ideias e comportamentos impregnados nas camadas geológicas da formação do brasileiro, como escreveu em textos tornados clássicos, como “Você sabe com quem está falando?” poderia visitar uma outra máxima que marca da nossa conduta, a crença de que “se não mata, engorda”. No caso, parece que o país acredita que, se a nova versão do Coronavírus não leva para a UTI e não mata, está tudo bem. A ponto do Presidente Bolsonaro, em mais uma exibição dos seus piores instintos, desejar boas vindas para a Ômicron, e receber uma reprimenda da OMS.
A Ômicron exibe toda a fragilidade da organização do Ministério da Saúde, desde o momento que chegou ao país. Se a rede do SUS e a ação de governadores e prefeitos foi capaz de produzir e estabelecer mecanismos de proteção sanitária, nos piores momentos da pandemia, e de articular a vacinação no país e evitar uma tragédia maior que as 616 mil mortes, o avanço da nova variante exibe toda a incompetência da gestão da Saúde. A maneira de lidar com a doença está dada desde o início da pandemia, quando a OMS estabeleceu a necessidade de “testar, testar, testar”. Não conseguimos fazer isto. Demoramos a aplicar os testes, convivemos com uma enorme subnotificação dos casos e, sem estas informações, tivemos poucos resultados na política de prevenção da doença.
Uma pesquisa do DataFolha divulgada neste domingo (16), revelou que 42 milhões de brasileiros pode ter tido Covid, o dobro dos 22 milhões de casos documentados. Em nenhum momento da pandemia, o Brasil realizou testes aleatórios, para identificar pessoas que poderiam ter a doença, de forma assintomática, e desta forma, evitar o contágio com outras pessoas.
A Ômicron deixou para trás todo tipo de pudor em relação ao enfrentamento da doença. Se, em alguns momentos, o governo fingia agir, agora, até mesmo a simulação foi abandonada. Não há testes, não há prevenção, não há sequer uma orientação para nortear o trabalho dos profissionais de Saúde. A Universidade de Washington estima que o Brasil terá um milhão de casos da doença por dia ainda neste mês de janeiro, e o Ministério ainda estuda a compra de testes e a liberação dos autotestes. Além disso, boicota a única forma eficiente de controlar a doença, a vacina, atrasado intencionalmente e desqualificando a vacinação das crianças.
Convivemos com isso. “Se não mata, engorda.” Parece uma ideia bem disseminada entre nós, a julgar pelo comportamento das pessoas nas ruas e pela baixa adesão ao uso de máscaras. O problema é que não é bem assim. Apesar da menor letalidade, muitas vidas serão perdidas. E o contágio prolongará a duração da pandemia, criando um ambiente favorável ao surgimento de outras variantes e mantendo por mais tempo a economia em suspense.
Uma visão da pandemia no estado do Rio ilustra bem a ideia de que o enfrentamento da Covid depende de ações coletivas, e que a ação de cada um é determinante para a proteção – ou risco – de todos. Apesar do alto número de casos, a ocupação dos hospitais no estado do Rio ainda é baixa. Mas não se dá por igual. Municípios que vacinaram com sucesso a população, como Niterói, que atingiu a marca de 87% da vacinação da população acima de 12 anos, mantém os hospitais vazios. Sabe-se que 90% dos casos de internação ocorrem com quem não completou a imunização. Mas, dentro da Região Metropolitana do Rio, vamos encontrar exemplos de municípios em que os hospitais começam a ficar cheios. Em Duque de Caxias, por exemplo, 68% dos leitos reservados para doentes de Covid na rede pública estão ocupados, e 17% das UTIs. Foi uma das cidades com menor êxito na vacinação, apenas 57% da população. A ela podem se somar Belford Roxo, 46%, e São João do Meriti, 38%. O cinturão bolsonarista que o Governador Claudio Castro constrói na Baixada para tentar a reeleição, certamente, contribuirá para que a pandemia ainda perdure por muito tempo.
A ideia de que “o que não mata, engorda” expressa bem o descaso sanitário com que convivemos desde tempos imemoriais. Não aprofundei a pesquisa. No Google aparecem referências até a Nietzsche, “o que não te mata, te fortalece”. Coisas da internet… Não faz muito sentido, porque a expressão não aparece com a mesma acepção em outras línguas. É mais provável que esteja ligada à prática de dispor de comida imprópria para a alimentação (dos outros, claro!), como tantas heranças do passado colonial e escravocrata. Para ir tão longe precisaríamos, definitivamente, do Roberto Da Matta. Mas desde já é possível afirmar, que a Ômicron não nos fortalece.