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A literatura como espelho do cotidiano da favela e ferramenta de transformação social. É com essa intenção que a escritora, jornalista e produtora cultural, Laíla dos Santos, compartilha sua trajetória em seu novo livro “O Despertar da Borboleta” que nasce da experiência vivida no Cubango, comunidade de Niterói.
Na obra, a autora conduz a narrativa, de forma poética, ao tratar da solidariedade entre os moradores e a virtude humana que emerge em meio às dificuldades.
O livro é uma narrativa autobiográfica que alterna passado e presente e captura a transformação pessoal da autora, uma mulher negra que cresceu na favela. Também é um convite para o leitor a conhecer seus becos e vielas, valorizando as histórias e personagens que marcaram sua infância e adolescência.
Na narrativa de Laíla, personagens como pedreiros, babás, cocadeiras e donas de casa ganham destaque como símbolos da luta diária pela sobrevivência. “Olho para eles e penso na força sobrenatural que trazem diariamente. Uma pessoa que criou sete filhos vendendo cocadas, ou a babá que cuida dos filhos de outra pessoa deixando o seu pequeno sob os cuidados de outra criança”, explica.
Esse é o segundo livro da autora, que estreou na literatura com “O Casulo”, seu livro autobiográfico. Laíla passou sua infância mudando de bairro, pois seus pais não conseguiam pagar o aluguel. Por conta disso, transitou em diversos endereços como Engenhoca, Barreto, Fonseca, para citar alguns.
Saiu do morro, tornou-se jornalista e, depois, mestra em Comunicação de Massa, pela Sapienza de Roma, na Itália. Seu livro nasceu durante a pandemia, após ter que fechar um restaurante que abriu em Lumiar, na Região Serrana do Rio. Foi quando Laíla decidiu voltar para Niterói e escreveu o livro “O Casulo”.
“O Despertar da Borboleta” é um livro que surge do véu se rasga até mesmo para ela, quando sua narrativa alterna passado, presente, esperança e angústia.
Por meio da realidade de sua escrita, rica em descrição, Laíla dos Santos fala de suas andanças que não tiraram dela o contato com o chão da sua terra, que ela chama de favela. É no contato diário com o território das comunidades que este despertar acontece e as lembranças do passado despertam.
Durante a pandemia, Laíla percebeu a necessidade de ampliar seu impacto. Começou a levar livros para crianças da favela e a realizar palestras gratuitas, compartilhando sua história de superação e incentivando a leitura como refúgio.
“Para negros da favela, desistir não é uma palavra que cabe no nosso vocabulário”, afirma.
Seu maior desafio é manter a humildade e não abandonar suas raízes, por isso desenvolve projetos sociais em dez comunidades de Niterói.
Foi essa preocupação que motivou a criação do projeto “Conhecendo a Cidade Pela Porta da Frente“. No projeto, ela deu a oportunidade de alunos entrarem em contato com a emoção de ouvir Villa-Lobos no palco, de conhecer um grande centro cultural, ou de assistir a uma peça sobre o abolicionista Luís Gama, de conhecer um quilombo, lugar de resgate da história de resistência dos negros escravizados; de visitar um centro de educação ambiental.
Entre as atividades do projeto, eram promovidas palestras em comunidades e visitas solidárias a espaços da cidade e da vizinha Rio de Janeiro.
Para Laíla, essa esfervescência cultural das comunidades destoa – em um grau muito elevado – da visão simplista de redução da favela a um ambiente de disseminação de violência.
— A violência é um projeto implantado, uma sobrevivência diária. Usar histórias de sucesso como símbolo de vitória é perverso, porque há muitas excelências sufocadas — completa.
Para a escritora, o Brasil só será melhor quando a base da sociedade, tantas vezes silenciada e maltratada, for valorizada. Seu trabalho artístico e social busca abrir portas e ampliar horizontes para a juventude das comunidades. “Não basta arte, precisamos de educação integral e de qualidade”.
No ano passado, Laíla teve a oportunidade de contar um pouco da sua trajetória com o convite para participar do Ted em Niterói.
— Eu pude contar a minha história e a importância de atravessar o rio com muita dificuldade e voltar para ajudar quem está vindo atrás, com as mesmas dificuldades. Fui a única aplaudida de pé por todos. Acredito que o motivo seja tocar na consciência das pessoas da importância de ajudar.
A SEGUIR: NITERÓI: De que forma seu livro reflete sobre o cotidiano da favela? O que você revela através da narrativa e qual caminho você escolheu para conduzi-la?
LAÍLA DOS SANTOS: O meu livro na verdade é a minha experiência. É tudo que eu presenciei e vivenciei ainda na tenra idade dentro da favela e que ainda vivo.
Voltei a morar no Cubango por escolha e amor pelo meu bairro, lugar que tenho lembranças agradáveis com amigos e familiares. Lembranças essas que por algum um tempo esconderam os percalços que é viver em uma favela.
– Como foi seu primeiro contato com a literatura? Que lugar ela ocupa na sua vida?
Meu pai, Lázaro dos Santos (em memória), me apresentou a literatura quando eu tinha entre 5 a 7 anos de idade. Ele recitava “O navio negreiro” de Castro Alves, lia Machado de Assis, me aproximando assim da literatura brasileira.
Esse contato paterno e amoroso, essa lembrança afetiva ficou marcada em mim. A leitura ocupa um espaço de intimidade e encontro comigo. Eu leio bastante.
Da Filosofia à Antropologia Cultural, da Sociologia à Religião. Leio sobre relações internacionais e nesse momento estou muito interessada nos autores negros, na cultura Bantu e no povo Os Maasai, que são um grupo étnico africano semi-nómade que habita principalmente o Quénia e o norte da Tanzânia.
– Pedreiro, babá, cocadeira e dona de casa são personagens essenciais na trama da vida e da sua narrativa. Qual a inspiração que você traz dessas pessoas?
Esses trabalhadores que lutam pela sobrevivência são inspiração e força na minha trajetória. Eu olho para eles e penso na força sobrenatural que trazem diariamente. Alguém que conseguiu criar sete filhos vendendo cocadas!
Ou mesmo a babá que vai cuidar dos filhos de outra pessoa, deixando o filho de um ou dois anos nos cuidados de um outro filho. Também criança que não tem idade nem para ser responsável por ele mesmo e tudo isso vem normalizado, como se nada fosse.
E todas essas pessoas fazem todos os dias as mesmas coisas acreditando sempre em um amanhã mais digno de se viver. Eles me inspiram e me fazem refletir sobre o social e as suas covardias.
– Como é a sua rotina? O que gosta de fazer ao acordar e o que não pode deixar de fazer antes de dormir?
Eu tenho alguns “rituais” diários. Ao acordar, olho para o tempo para definir a jornada. Se for uma manhã de sol, decido que depois do café da manhã, ouvindo música erudita, vou cuidar do jardim. No final da tarde eu jogo capoeira e uma vez por semana tenho aulas de violão.
À noite, antes de dormir, leio e depois tento tirar umas notas no violão. Quando estou escrevendo um livro e me vem a inspiração, eu deixo o que estou fazendo e escrevo o que a inspiração me trouxe. Tenho uma vida simples.
– Quais são suas memórias afetivas mais latentes?
As memórias mais marcantes são aquelas com o meu pai. Eu, deitada nos braços dele, quando ele lia para mim e eu me adormecia. As nossas conversas profundas e os seus ensinamentos ancestrais.
Voltando para o livro, como é seu processo de escrita? Costuma anotar as ideias? Os rascunhos?
Os meus livros nascem de experiências vividas e das muitas inspirações. Eu sou dislexia e erro muito quando escrevo. Preciso ler e reler o que escrevi. Mas como essa vida nos surpreende, sou escritora para além da minha dificuldade. Consigo criar narrativas repletas de descrições que levam os leitores a entrarem na história.
Eu acredito que um livro com uma narrativa direta e descrições justas e necessárias pode ser considerado interessante. Eu não consigo escrever em papel e nem mesmo no computador. Tenho um aplicativo de texto dentro do meu celular, escrevo os meus livros pelo celular. Só assim consigo escrever.
– Quais são os principais desafios que você enxerga hoje na sua vida?
Eu acredito que todos nós viemos para esse mundo para cumprir uma missão. Eu, durante a pandemia, percebi que deveria ser útil para além dos meus filhos, familiares e amigos. Então eu comecei a levar livros para crianças da favela de Niterói. Depois eu comecei a fazer palestras gratuitamente para elas contando a minha história de extrema pobreza ainda pequena.
Das dificuldades de ter pais alcoolizados e muitas vezes ter que ir procurar resto de alimentos nas feiras para ter uma sopa para tomar em casa. Falo para elas que a leitura foi o meu refúgio e estudar a minha âncora de salvação. Explico que para negros de favela desistir é uma palavra que não cabe no nosso vocabulário.
O meu maior desafio é não me deixar ser dominado pelo ego, egocentrismo e egoísmo. Não posso virar as costas para os meus. Por esse motivo voltei para o Cubango e faço projeto social com a garotada de 10 comunidades de Niterói, incluindo Santa Rosa, Caramujo, Morro do Castro, Cavalão, Vila Ipiranga…
– Além de escritora, você é jornalista, roteirista, produtora, empresária. Como concilia isso tudo?
Eu concilio todas as profissões fazendo uma coisa de cada vez. Se tenho que fazer um roteiro para um filme? Me dedico exclusivamente a isso. Se tenho que escrever um livro é mais flexível porque depende mais da inspiração e ela vem quando deseja. Então tudo que eu faço, dou prioridade ao que é prioridade no momento.
– O que mais te incomoda da visão de algumas pessoas quanto à redução da favela como um ambiente de violência? De que forma com a sua arte você consegue levantar pontos que transpassam e superam essa ideia?
A favela é um lugar violentado todos os dias. A violência é implantada ali como projeto. Quando você está acuada e atacada por todos os meios possíveis você fica quase paralisado e sem reação. Essa conversa que a favela venceu é ruim. É uma sobrevivência diária.
Usar a história de um único indivíduo que conseguiu sair de lá através de sua arte e muito suor e usar, como símbolo, que a favela venceu é perverso. Nas favelas têm excelências sufocadas.
O Brasil poderia ser um país melhor se a base dessa sociedade não fosse tão silenciada e tão covardamente maltratada. Percebe que para eu chegar até aqui foi uma luta desumana?
Fazer o que eu faço hoje com projetos de levar essa garotada para lugares, como o Cristo Redentor, Teatro Riachuelo, jantar em restaurante de classe média com cardápio europeu ou visitarmos quilombos é o modo que eu encontrei de fortalecer a causa. Mas não basta, precisamos de educação em tempo integral de qualidade para essa garotada.
Mãe de três filhos, Laíla dos Santos é jornalista, escritora, roteirista, produtora, empresária, palestrante e mestre em comunicação de massa pela Sapienza de Roma. Nasceu no Cubango, bairro periférico de Niterói, na região metropolitana do Rio.
É formada em jornalismo, trabalhou em alguns veículos de comunicação, como Rádio Tupi, Rádio Globo e TV Gari (da Comlurb).
Em Roma, também teve participação em um programa da Rádio Vaticano, em língua portuguesa. “O Casulo” é seu primeiro livro.
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