23 de novembro

Niterói por niterói

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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
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Cuidado com o papagaio!

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Foi por pouco: um dogue alemão como este quase acabou com a carreira de um repórter e um fotógrafo

Nas minhas andanças pela Grande Niterói como repórter de “O Fluminense”, há 40 anos, percorri bairros, ruas, becos e favelas que jamais conheceria, mesmo nascido e criado na cidade.

Sempre acompanhado de fotógrafos e motoristas mais experientes, que sabiam chegar aos locais mais inóspitos – em uma época que não havia celular, GPS e placas nos  logradouros. Aliás, estas ainda estão em falta.

Dos fotógrafos mais antigos posso citar o grande Jurandir, o Juruna de Maricá; Salomão Sant’Anna, sempre cofiando o vasto bigode; o espetacular Zalmir Gonçalves, cujo acervo preciosíssimo de milhares de fotos e negativos parece que jogaram no lixo (tomara que não, mas sou pessimista); Guarará Siqueira, o rei dos cabarés da velha Lapa; e Aécio, personagem desta hilária história acontecida em São Gonçalo, em um bairro cujo nome esvaiu-se da memória (tal qual o sobrenome do Aécio).

Ranzinza, Aécio não gostava de sair com garoto (forma como ele me tratava). Tinha umas quatro décadas de jornalismo nas costas. Cheio de histórias para contar, mas não contava porque era antissocial por natureza.

Gilberto Fontes, o chefe de Reportagem, nos pautou para entrevistar alguém em um endereço gonçalense dos mais escondidos. Foi duríssimo encontrar, mas José Argemiro, o Mosquito, sagaz piloto do Fusca do jornal, localizou o imóvel, como sempre acontecia mais cedo ou mais tarde.

Saltei com dificuldade porque Aécio não desceu do assento do carona. Tive que me espremer para sair daquele carro tão pequeno. De propósito, apertei o assento com força, espremendo o coroa contra o painel. Ouvi pesados xingamentos e desaforos.

Na porta da casa humilde, bati palmas. Demorou, mas surgiu uma senhora mal encarada. Perguntei se fulano de tal estava. Ela respondeu que não morava ninguém com aquele nome. Chequei o endereço, era ali mesmo. Insisti.

A megera, muito contrariada, apontou uma espécie de corredor ao lado, que levava aos fundos do terreno.

“O desgraçado fica no barraco lá no fundo. Mas você tem que ir até lá, eu não vou chamar. Agora, toma cuidado com o papagaio. Todo cuidado é pouco com ele”, avisou.

Como a reforçar o alerta da mulher, no portão que dava acesso à tal passagem, havia uma placa de madeira com letras meio tortas que repetiam: “Cuidado com o papagaio”.

Avisei Aécio que tinha um papagaio perigoso na área.

“Garoto de Icaraí tem até medo de papagaio. É cada foca que aparece no jornal, pqp!!! Tá com medinho???”, vociferou.

Entramos. Não tinha medo algum, só avisei da presença da ave ameaçadora. Abri o portão de mola e fui andando em direção ao fundos do muquifo. Era uma trilha de terra batida bem estreita, ladeada por dois muros altos. Cerca de 50 metros de extensão.

Caminhei na frente. Atrás veio o Aécio, resmungando. Carregava uma bolsa pesadíssima com material de fotografia. Bufava e suava o velho homem de imprensa.

Quando faltavam uns 10 metros para o fim do caminho, ouvimos vários gritos, na voz fanhosa de um papagaio: “Pega Rex, pega Rex, pega Rex!!”.

Foi quando vi em carreira desabalada, em nossa direção, irresoluto e maldoso, um dogue alemão acinzentado, de porte atlético. Era o Rex, que latia, rosnava e se aproximava com rapidez. Era quase um galope de cavalo.

Animal empregado em caças nobres nos bosques europeus, o dogue de São Gonçalo vivia à espera de incautos como nós, já que, naquele terreno, não havia nada para caçar. Nem mesmo as ratazanas da região se atreviam, imagino.

Tinha eu 21 anos. Jogava futebol, era bem rápido, ainda mais em uma situação como aquela. Virei de costas e disparei de volta pelo corredor.  Gritei na hora: “Corre, velho!!!”.

Aécio demorou um pouco a entender. Mas, mesmo se tivesse entendido, não tinha muita chance. Passei quase que por cima dele, em correria rumo ao portão. No desespero, ele implorava: “Me ajuda Sergio [naquela hora o codinome Garoto foi esquecido]”.

“Se vira, cada um por si”, respondi de volta.

Ao chegar ao portão, me virei para olhar. Como quem corre na frente corre mais, o ancião ainda não tinha sido alcançado. Mas o cão assassino estava no vácuo dele.

“Corre vagareza!!!”, gritei pra ele.

Por consideração a um homem com idade para ser meu avô, abri e segurei o portão. Aécio passou como um corisco. Soltei o portão, que bateu com estrondo no madeirame.  Em milésimos de segundos o dogue alemão se jogou de peito contra o aramado que impedia sua fuga para a rua.

O cachorro ladrava e espalhava uma baba branca volumosa e espessa para todos os lados. De tão grande, a língua dele se assemelhava a uma fatia gorda de presunto.

Salvo por milagre, Aécio ofegava, não tinha fôlego nem sequer para xingar, uma de suas especialidades.

Ouvimos, então, duas vozes quase simultâneas.

“Eu avisei vocês. Foram lá porque quiseram. Deram sorte. Outro dia um ladrão perdeu metade da bunda aí”, disse a moradora quando conseguiu parar de gargalhar.

A segunda voz tinha origem animal. Era o papagaio vigilante. “Rex pega geral! Rex matador”.

Naquele dia voltamos à Redação sem entrevistar ninguém.

 

 

 

 

 

 

 

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