22 de dezembro

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“Para mim, Niterói é cinema”, resume a cineasta Liliane Mutti

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Em conversa com o A Seguir, Liliane fala do seu segundo filme sobre a cidade, que narra a história que ninguém contou sobre a Ilha da Conceição, sua trajetória no cinema e sua identificação com Niterói: “sou praticamente uma arariboia”
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A cineasta Liliane Mutti em Charitas, um dos seus lugares favoritos de Niterói. Foto: Louise Tauil

“Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?”. Ou melhor, quanto de Niterói cabe na filmografia de Liliane Mutti? A provocação inicial, que abre brecha para muitas respostas, é o título do novo filme roteirizado e dirigido pela cineasta Liliane Mutti, o segundo da sua carreira sobre Niterói. O lançamento do filme está sendo cogitado para o final desse ano no G20, em novembro. Nos cinemas, a previsão é no primeiro semestre do ano que vem.

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– Para mim, Niterói é cinema. Para onde eu olho, vejo cinema. Gosto muito de Jurujuba, aquela praia, os pescadores, aquele tempo… Gosto do Caminho Niemeyer. Penso em uma ficção ali. Todos os caminhos me levam a Niterói porque acho a cidade cinematográfica – declarou.

Na Ilha da Conceição, durante a filmagem de “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?. Foto: Arquivo Pessoal

A perspectiva socioeducativa é uma preocupação quase constante nos filmes de Liliane, que chegou a fazer mestrado na área de Educação na UFF. Apesar de residir atualmente na França, ela sempre vem visitar a cidade, e não à toa, adotada por ela como pano de fundo para três de seus filmes.

O primeiro,“Salut Mes Ami.e.s!”, mostrou um pouco do cotidiano do CIEP 449, localizado em Charitas. O filme é  um retrato visceral das ambições e da diversidade de opiniões que emerge da fase da adolescência. Liliane conduz a narrativa como um mosaico permeado pelo afeto.

O CIEP 449 é uma das poucas escolas integrais do estado do Rio de Janeiro e a primeira pública franco-brasileira da América Latina.

Agora, a cineasta trabalha na montagem do seu segundo filme que se passa na cidade, “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?“, que fala sobre a Ilha da Conceição, e anuncia que está escrevendo o roteiro do terceiro filme em Niterói, esse, sua primeira ficção.

No set de gravação do filme “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?”. Foto: Arquivo Pessoal

Em conversa com o A Seguir, a cineasta Liliane Mutti, que estreou no cinema com o documentário “Miúcha, a voz da bossa nova“, o qual roteirizou e dirigiu, fala sobre seus (muitos) projetos, explica o que a motivou fazer um filme sobre a Ilha da Conceição, relembra momentos da sua trajetória e da sua relação íntima com Niterói, onde estudou, filmou e se doou por inteira.

– Meu desejo é colocar meus filhos no CIEP 449, se for da vontade deles, é claro. O pertencimento que sinto em relação à Niterói é uma construção. Eu comecei a ouvir sobre a história da Ilha da Conceição durante as filmagens do meu filme sobre o CIEP 449, onde tive contato com alunos que moram ali. Meio que uma coisa vai levando a outra. As coisas vão se engendrando, né? Eu brinco que sou praticamente uma arariboia porque me sinto representada. Foram os índios que resistiram aos franceses e, como eu moro na França e carrego uma perspectiva pós-colonial, eu me sinto imigrante por lá – revela a cineasta.

“A reza”

Liliane conta que atualmente está mergulhada na pós-produção de “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?“. O filme é narrado pela voz inconfundível do multiartista de Niterói, Angelo Morse, e trata, entre outras coisas, do crescimento do processo industrial brasileiro e da decadência do transporte náutico.

A Ponte Rio-Niterói. Foto de Arquivo do filme “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?”

– Eu queria um narrador em primeira pessoa, que funcionasse, uma personagem pela voz. E aí eu descobri que o Angelo nasceu na Bahia e se mudou ainda pequeno para Niterói. Os caminhos foram parecidos com o meu. Esse lance da identificação com a cidade – explica.

Ao revelar fotos de casamentos na Ilha da Conceição, o filme procura entender a imigração portuguesa, muito marcante na região por conta da presença dos estaleiros. Naquela época, havia uma espécie de microcolonização portuguesa, assunto muito explorado no filme.

Outro ponto que o filme se debruça é sobre as más condições dos moradores, principalmente, quanto à rotina das crianças que residem na Ilha da Conceição.

– O que me move a fazer filmes é isso. As injustiças. O mundo é muito duro. Não está igual para todo mundo. E o cinema é um lugar que a gente pode colocar nossas angústias. Todas as nossas dores e perdas. É onde eu canalizo tudo. Uma cena que me deixou muito mexida foi a das crianças brincando na lama e naturalizando como espaço de brincadeira. A criança é livre. Ela só vai, né? Eu queria tirar a criança da lama, mas vivi um dilema ético porque não queria interferir na dinâmica familiar, e elas estavam tão felizes. Eu apenas voltava para casa torcendo para os anticorpos fazerem todo o trabalho necessário.”, completa.

Outra história que ela conta é a de um morador da Ilha da Conceição que lembrou da época da construção da ponte Rio-Niterói e como aquela poeira da obra chegava e a Ilha, soterrada. “Não é ser contra a Ponte, mas sempre que a gente interfere no meio ambiente existe toda uma reposição que precisa ser feita. E não foi o que vimos ali”, diz.

Filmado quase todo em preto e branco, o longa também mostra um portão que conecta à colônia de pescadores. Um verdadeiro portal. Um simbolismo que ganhou corpo com a sua concretude. Algo que ela nomeou de “portão-portal”.

Durante as filmagens de “Quanta reza”. Foto: Arquivo Pessoal

Outro personagem, encontrado no set por acaso, foi uma garça que não se conteve em vários momentos da filme. Ela desfilava e posava com a desenvoltura de um personagem que tinha o roteiro na ponta da língua.

A garça, que virou personagem do filme “Quanta reza será preciso para um simples banho de mar?” Foto: Arquivo

– A garça é muito elegante, esbelta. Ela vai e volta no filme. Quanto mais ela posava e desfilava para a gente, mais eu ficava impressionada com aquela beleza plástica. A gente só estava aguardando o momento em que ela ia voar, mas isso não aconteceu – revela Liliane.

A trilha do filme é assinada pelo Otávio Garcia, que fez uma trilha original baseada no jazzy, um jazz estilo praeiro. Já a curadoria das músicas comerciais foi feita por Liliane.

Falando em música, o filme-documentário está quase entrando na montagem de som, uma das partes favoritas da cineasta.

– Para mim, o filme começa com uma playlist. A música é narrativa, essencial pensar nela como construção da história – resume.

Mosaico experimental

Uma curiosidade é que a trama do filme é costurada por um rico acervo histórico de fotos e imagens em Super 8, digitalizadas exclusivamente e minuciosamente para o filme. Essas imagens alternam com outras ficcionadas, simbolizando o sonho de “um simples banho de mar”, no enredo do roteiro.

A escolha de optar pela mistura de documentos históricos – fundamentalmente fotos – e imagens em movimento ficcionadas foi uma solução que Liliane encontrou para levar à tela do cinema mais camadas de emoção.

– A Super 8 tem um corte racial de classe. A gente não encontra nos anos 50/60, que é quando se passa o filme porque é um artigo de luxo. Então eu vou para a ficção, trago a Super 8, apropriada para o contexto do filme numa espécie de sobreposição experimental, a partir de arquivos do Laboratório de Preservação Audiovisual do departamento de Cinema da UFF, o Lupa. Mas é um mosaico. Consultamos arquivos da Cinemateca Brasileira, do Museu de Imagem e Som (MIS), arquivos pessoais. Fomos de casa em casa vendo quem tinha foto. No documentário, a gente está sempre lidando com a presença e a ausência e a gente precisa significar essa ausência – explica.

A adoção da cidade

A conexão com Niterói vem de outros tempos. Foi no ambiente universitário, enquanto cursava seu Mestrado na UFF, que Liliane teve seu primeiro contato com o CIEP 449. No seu primeiro entendimento, ela já sabia, de forma muito consciente, que aquela história não ia morrer ali. Ela carecia de ser compartilhada. A história ficou guardada numa gaveta, mas a passagem do tempo não a impediu de pensar no desenvolvimento do filme.

Liliane, os alunos do CIEP 449 e o diretor do colégio, Cicero Tauil. Foto: Arquivo Pessoal

– Eu me apaixonei pelo CIEP 449. Eu queria ser madrinha da escola, queria ter força para fazer mais. O filme é de baixo orçamento, singelo, mas ele precisava existir daquele jeito. A história estava ali, mas as pessoas não viram. Eu percebi que eu era de fora daquele ambiente, mas me sentia de certa maneira de dentro. Eu senti uma adoção pela cidade – conta Liliane.

Liliane e os alunos do CIEP 49 na exibição do filme na Sala Nelson Pereira dos Santos. Foto: Arquivo Pessoal

Foi através do CIEP que Liliane conheceu a história da escola intercultural Brasil-China de Niterói, também localizada em Charitas. A escola a inspirou para seu terceiro filme sobre a cidade, a primeira ficção da sua filmografia. “Nia Hao, o dragão de papel” narra a história de uma menina que está fora da escola, se reintegra ao ensino e se torna a pior aluna e tudo bem, afinal, ela é a melhor desenhista de dragão.

Liliane Mutti em visita técnica à escola intercultural Brasil-China de Niterói. Foto: Arquivo Pessoal

– A intenção do filme é um pouco anti-produtivista porque mostra que existem vários saberes e formas de ser a melhor aluna da classe. Ou não, porque você não está competindo com ninguém. É um filme sobre educação, um rastro do mestrado que eu fiz. Depois disso eu fiz um outro mestrado na França, em questão de gênero feminista, e um doutorado em Cinema – completa.

A escola intercultural Brasil-China de Niterói fica localizada em Charitas. Foto: Arquivo Pessoal

Atualmente Liliane está fazendo uma monitoria de aula prática de Cinema para adolescentes no Brasil.

– Eu adoro essa faixa etária, esse universo. Eu gosto dessa troca. Acaba que para mim vira uma espécie de matéria-prima. Eu dou, mas recebo muito.

Referências

Mutti diz que costuma guiar seus filmes com base na “filosofia clariciana” e diz se inspirar muito na densidade de Clarice Lispector no processo de construção dos seus personagens.

Essa linguagem voltada para a complexidade, o conflito e o visceral são conceitos que Liliane procura cultivar em seus longas e curtas, como é o caso, por exemplo, do curta “Instant-ci” (2019).

Exibição do “Miúcha, a voz da bossa nova no Festival do Rio”. Na foto, Liliane Mutti e seu parceiro, Daniel Zarvos, que também assina a direção. Foto: Arquivo pessoal

De forma quase subconsciente, ela explica que está sempre em busca de personagens com muitas camadas. O olhar feminino e da mulher como protagonista é outra força motriz de Liliane. A mulher como autora da própria história e não apenas como um objeto do narrador.

Brincando de mulher-polvo nas ruas de Paris cercada de Simone Veil (feminista que lutou pelo direito ao aborto, que hoje faz parte da constituição francesa). Foto: Arquivo Pessoal

Brasil afora

Mutti também assina a direção da série “Decola”, que começou na TV Cultura, e agora está na CineBrasilTV. Com direção-geral de Daniel Zarvos Guinle, ela faz a apresentação e o roteiro.

Os episódios foram gravados no Norte e no Nordeste, começando em Caraíva, no Sul da Bahia, e seguindo em jornada até a Amazônia, e abordam a cultura, os saberes e as histórias do Brasil profundo.

Na Amazônia gravando a série Decola, que criei e tá no ar pelo canal CineBrasilTV. Foto: Arquivo Pessoal

Outra produção recente de Liliane é o curta “Elle”, que conta a história da viagem dos pais de Marielle Franco ao jardim que leva o nome da filha em Paris, no esforço de cobrar justiça pelo seu brutal assassinato. Mutti assina a direção ao lado de Daniela Ramalho.

“Elle, Marielle Franco” é um filme-ensaio narrado por áudios em primeira pessoa, por Marielle, que tem sua voz alternada com a da sua mãe, Marinete, e de seu pai, Antônio.

– O Elle existe porque Marielle continua existindo em cada um de nós que fazemos do cinema nossa re-existência e lutamos por justiça, por cada vida interrompida pela violência – declarou.

Próximos projetos

Além do seu terceiro filme sobre Niterói, que ainda está na pré-produção, Liliane trabalha atualmente em cima da pesquisa de outro influente nome da bossa-nova. Depois de Miúcha, ela planeja outra cinebiografia musical. Agora, sobre o músico e compositor, o pianista Johnny Alf, que influenciou nomes como João Gilberto, Tom Jobim e Luiz Bonfá.

Em paralelo, também está trabalhando na adaptação do livro “Fascista no divã”, de Marcia Tiburi, onde colocará em prática algo inédito até então em sua carreira: dirigir um filme com roteiro feito por outra pessoa. Mas isso é cena dos próximos capítulos.

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