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Os moradores de Niterói têm o número da linha na cabeça: 999. “Quase mil”, era como a cidade apelidava o lotação da CTC, a Companhia de Transportes Coletivos do estado do Rio, apertado e sem ar condicionado. A primeira ligação da cidade com o Rio pela Ponte Rio-Niterói, uma viagem perdida no tempo, mas cheia de recordações para milhares de pessoas que escolhiam essa opção para a travessia. Histórias de sufocos, atrasos, engarrafamentos, temporais… Em 50 anos, aconteceu de tudo.
Os ônibus saiam de Charitas, que na época não tinha prédios na orla, era um pátio deserto para os ônibus. Havia ainda outras duas linhas, o 998, que ia para a ilha do Fundão e o aeroporto do Galeão, e o 996, Gávea, que dava uma volta interminável em Niterói e depois no Rio de quase duas horas para chegar até a PUC. Com o tempo, novas linhas foram adicionadas, direto do Fonseca, da Região Oceânica. Os números mudaram. E hoje a linha do antigo 999 faz apenas quatro viagens por dia.
Os roteiros e os números das linhas não são mais os mesmos, mas muitos dos personagens que trabalham para facilitar o transporte dos moradores de Niterói cumprem o ofício há mais de 30 anos. É o caso de Luiz Cláudio Carvalho, motorista de ônibus há 35 anos, que trabalhou por quase toda a sua carreira no trajeto Rio-Niterói.
Na época em que trabalhava no 998 (Charitas-Galeão, 760D atualmente) que passava pela Cidade Universitária, Luiz foi responsável pelo trajeto de muitos dos estudantes universitários niteroienses em suas diárias viagens para o campus da UFRJ. No entanto, Luiz conta que o número de passageiros nessa linha diminuiu consideravelmente:
– Na época do 998, eu ia para a Cidade Universitária com 90 passageiros. Com o tempo, esse número diminuiu bastante, chegando a 40 e poucas pessoas -, conta o motorista.
Hoje na linha 740D (Charitas-Ipanema), Luiz reconhece a importância do transporte de ônibus pela ponte, e revela que, de manhã, a diferença do movimento é muito grande entre a ida para o Rio e a volta para Niterói. É o morador de Niterói e de cidades vizinhas que se move para o Rio.
– Muitas pessoas vivem nas cidades em volta do Rio, mas são cidades dormitório, porque o trabalho é no Rio. No horário de pico, de manhã, vou com o ônibus lotado para o Rio e volto para Niterói com 12 ou 15 pessoas -, explica.
Entre os motoristas que trabalharam nas primeiras linhas que passavam pela Ponte, alguns ainda exercem a função, mas em outras linhas. Geraldo Rodrigues, de 60 anos, trabalhou por dois anos na linha 999 (Castelo-Charitas). Ele conta que, ainda quando era criança, ia para a Praça XV para acompanhar a construção da ponte com seu pai.
– Eu ia com meu pai para a praça XV e assistia à construção da Ponte, eles fixando as partes -, lembra o motorista. Geraldo se recorda ainda de uma informação curiosa: “No início da ponte, tinham aqueles ônibus articulados, ia muita gente. O cobrador falava com o motorista por walkie-talkie, de tão longe que era”.
O motorista, depois de tantos anos de travessia, compara as mudanças ocorridas na atual da linha, que hoje se chama 2905D, e conclui que, depois da pandemia, a quantidade de pessoas trabalhando no sistema de home-office influenciou no fluxo de pessoas que saem de Niterói para o trabalho Rio. Para ele, o surgimento do Uber também afetou o movimento dos ônibus.
-Muitas das vezes, ia e voltava lotado. O fluxo de pessoas era muito grande. Com a pandemia, diminuiu muito o número de passageiros. A Avenida Rio Branco acabou. Muitas pessoas estão trabalhando de casa… Hoje tem Uber, tem várias formas de se locomover. Isso influenciou também – explica Geraldo.
Vale lembrar que a ponte Rio-Niterói comporta uma quantidade muito grande de veículos por dia, muito acima do que era planejado inicialmente. No início de sua operação, a ponte Rio-Niterói esperava cerca de 20 mil veículos por dia. Hoje, o número já chega aos 150 mil. Bem humorado, Geraldo brinca: “Hoje, já vão fazer outra ponte, né não? (risos)”.
A atual linha executiva 2905D, a única que sai de Charitas, tem o ponto final no Castelo, faz duas viagens de ida e duas de volta por dia. O responsável por essas viagens é Sandro Santos, de 45 anos, que trabalha há 14 anos na linha. Sandro relembra que, antes da pandemia, o ônibus saía de 15 em 15 minutos, com uma quantidade considerável de passageiros. Hoje, o movimento não chega próximo de ser o mesmo, o que justifica a grande diminuição da frota da linha.
O motorista conta que, desde que começou a atravessar a ponte Rio-Niterói a trabalho, percebeu uma diferença: tornou-se mais complicado atravessar a ponte.
-Tem diferença. O problema maior são os acessos. As obras acabaram estreitando os acessos à ponte -, desconfia Sandro.
O trajeto que Sandro faz nos dias de hoje com o 2905D passeia por diversos pontos importantes na história da cidade do Rio. Em Niterói, o trajeto passa por Charitas, São Francisco, Icaraí e entra na Presidente Backer. Virando à esquerda na Roberto Silveira, segue rumo à ponte. Chegando ao Rio, já que não existe mais o elevado da Perimetral, desce a ponte em Santo Cristo, bairro onde surgiram os sobrados duplex: comércio embaixo, residência no segundo andar. As inúmeras construções desse tipo são observadas ao longo do trajeto, passando pela Gamboa e pela Saúde, bairros muito tradicionais da cidade carioca que também receberam investimentos no Projeto Porto Maravilha. O percurso passa pela roda gigante Yup Star e pelo zoológico de animais aquáticos AquaRio.
Percorrendo toda a Avenida Passos, o trajeto ainda passa em frente ao Gabinete Português. Passa pela Praça Tiradentes, pela Catedral Metropolitana, pelos Arcos da Lapa, pelo Passeio Público, local que também já foi um ponto final conhecido pelos cidadãos niteroienses que iam para o Rio na época do 999, e pela Cinelândia. O 2905D, remanescente dos ônibus que iam para o Castelo, encerra suas viagens para a cidade maravilhosa no Edifício Garagem Menezes Côrtes, no Centro do Rio.
A viagem nessa linha saindo de Niterói já não é apenas uma ida ao Rio de Janeiro, mas também um passeio pela sua própria história. Os diferentes itinerários que a linha teve, as obras pelo Rio que modificaram a dinâmica da chegada dos niteroienses à cidade e os diversos lugares históricos presentes no trajeto. Tudo isso capitaneado por quem viveu várias dessas mudanças enquanto já era motorista dessas linhas.
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