Vai um diospiro aí, meu filho?
Naquela manhã, meus pés deslizavam sobre a terra batida. Tudo era leveza. Fazia frio tolerável, lembro-me bem, mas nada que as passadas firmes e sem muita pressa não aquecessem. Uma brisa boa vinha dos campos ressecados pelos ares de dezembro. Norte de Portugal, sozinho, mochila nas costas, a caminho de Compostela.
Cruzo uma aldeia silenciosa, pouca gente à vista, casas fechadas. Assim que começo a subir uma rua íngreme e silenciosa, vejo sobre a mureta de uma casa cinco ou seis caixas de papelão. Curioso, troco de lado na calçada para bisbilhotar o que tinha dentro delas. Numa, peras; noutra, maçãs. Havia, ainda, laranjas bem pequenas, algumas cerejas, figos maduros… E um bilhete manuscrito em folha de caderno, preso sob uma pedra ao lado da última caixa.
– Peregrino, coma e leve o que quiser.
A generosidade habita esse mundão de Deus. E vai muito além de um copo de água. Em janeiro, na Serra do Cipó, em Minas Gerais, “namorava” uma mangueira carregada bem na beira do caminho. Estava, diria, plena e magnífica. O cheiro da fruta, às centenas, tirava de cena o de meu suor naqueles duros senderos.
– Senhor, entre, apanhe, leve e coma quantas quiser – ouvi de uma senhora que deve ter percebido meus olhos arregalados para as graúdas no pé.
Este mês, descendo o Pico do Caledônia, em Nova Friburgo, tive uma visão fantástica: um gramado coberto por pinhões. Antes mesmo de ter a intenção de enfiar as mãos pelo vão do arame farpado, lá veio outra voz, essa quase infantil, de um rapazola.
– Pule a cerca, encha a mochila à vontade.
Claro que obedeci. Em Duas Barras, terra de Martinho da Vila, fui convidado para subir numa jaboticabeira carregada na beira do caminho. De novo, não recusei. Goiaba, no Serro, em Minas, pelei o pé. Em Logroño, na Espanha, ameixas e cerejas, ambas bem ácidas e comidas em excesso, quase me tiraram do caminho, se bem me entendem.
Em Niterói, este ano, tropecei num pé de araçá, uma de minhas frutas preferidas. Abusado, quase tenho o mesmo destino de Logrono. Quando já estava satisfeito da Silva, a voz da dona daquele maná sentenciou:
– Coma mais, pegue mais, não se acanhe…
Mas naquele dezembro, em Portugal, o melhor estava por vir. Caminhava distraído, pensamento distante, quando fui abordado por uma típica portuguesa, senhora pra lá dos 70 anos, vestes negras, lenço cobrindo a cabeça. Atravessou meu caminho, saindo de sua casa com uma grande sacola na mão. Sotaque carregado, disparou:
– Peregrino, leve esses diospiros para sua merenda…
Até que meu tradutor cerebral encontrasse em fração de segundos o significado daquela palavra, tive a sensação de que a generosidade da dona lusitana era extrema, exagerada, até descabida para uma pessoa só. E era mesmo.
Caqui, uma sacola cheia, mais pesada que minha mochila, com pelo menos uma dúzia de frutas grandes e maduras. Nunca comi tanto caqui, ops, diospiro (ou dióspiro, aprendi depois lá na terrinha). De fome, quem caminha, não morre. Já a dor de barriga…